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“Medida Provisória” mostra que não estamos longe de viver uma distopia

Lázaro Ramos, Taís Araújo, Seu Jorge, Alfred Enoch e Adriana Esteves falam sobre o roteiro, racismo e a censura que o longa sofreu antes de ser lançado

por Beatriz Lourenço 7 abr 2022 00h05
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(Clube Lambada/Ilustração)

edida Provisória, primeiro longa-metragem com direção de Lázaro Ramos, é impressionante. O enredo se passa num futuro distópico em que o governo brasileiro decreta uma medida que obriga os cidadãos negros a voltarem à África como forma de reparar os tempos de escravidão. A partir daí, as questões sociais são debatidas com uma mistura de humor, drama e thriller. A estreia está marcada para 14 de abril.

No elenco de Medida Provisória há nomes como Taís Araújo, Seu Jorge, Alfred Enoch, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Emicida, Flávio Bauraqui e Mariana Xavier. Em um país onde 97% dos filmes é dirigido por pessoas brancas, 20% dos atores nas telas são negros e a mulher negra representa apenas 4,4% da equipe, contar essa história é essencial. “Nosso filme teve acesso a essa pesquisa e foi feito para mudar esses parâmetros. É o longa brasileiro com maior parte de negros à frente e atrás das câmeras – mas não sei se é algo a ser comemorado porque só agora isso aconteceu”, diz Lázaro à Elástica. “Ele também tem um protagonismo da mulher negra diferente do que já foi mostrado até então e está aí justamente para trazer esse tipo de discussão.”

O roteiro é baseado na peça teatral “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação – que também aparece no longa como ator. Escrito originalmente em 2011, Lázaro se apaixonou pelo texto e o adaptou para o cinema em 2015, sendo filmado em 2019 na cidade do Rio de Janeiro.

A trama começa quando a inspetora Isabel (Adriana Esteves) instaura a Medida Provisória 188, que obriga pessoas negras a voltarem para a África imediatamente. Nesse contexto, são contadas as histórias do jornalista André (Seu Jorge); Antônio (Alfred Enoch), um advogado que luta pelos direitos humanos; e sua companheira Capitu (Taís Araújo), uma médica que precisa encontrar forças para sobreviver em meio às perseguições.

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Até ser lançado, Medida Provisória sofreu censura da Ancine – a equipe teve dificuldade de conseguir a autorização para estrear no circuito nacional por mais mais de um ano. Em comunicado, os representantes do diretor disseram que “foram trocados com a agência dezenas de e-mails, checados o recebimento e andamento de protocolos, bem como foram realizadas consultas processuais.” Em resposta, a Ancine afirmou que o filme estava em “fase de análise” do pedido de investimento para a sua distribuição em salas de cinema.

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(Medida Provisória/Reprodução)

Em março de 2021, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, pediu boicote ao longa, descrevendo-o como “pura lacração vitimista e ataque difamatório contra o nosso presidente”. Abaixo, listamos quatro cenas que mostram que a ficção está cada vez mais próxima da realidade:

1. Disseminação de fake news: Isabel tem um perfil falso nas redes sociais onde dissemina fake news. No Brasil, essa foi uma ferramenta usada durante as eleições e a pandemia para confundir os cidadãos. Um estudo realizado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts afirma que elas se espalham 70% mais rápido que as notícias verdadeiras e alcançam muito mais gente. “Ao meu ver, essa é a atuação de pessoas criminosas”, diz Adriana Esteves.

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2. Violência policial: No longa, a medida permite que policiais militares capturem os indivíduos que estão fora de suas casas para mandá-los embora do país por meio da força física. Fora das telonas, o Atlas da Violência de 2021 revelou que a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Quando falamos do índice de morte de jovens mortos por ano, constatamos mais de 70% deles são negros.

3. Governo conservador: Na ficção de Lázaro, a votação da medida provisória é feita no meio da noite com um grupo de deputados alterados fazendo discursos de ódio em nome da família e da religião. Foi assim que ocorreu o processo de impeachment de Dilma Rousseff. No entanto, no último mês de março, o Tribunal Regional Federal inocentou a ex-presidente da acusação de “pedaladas fiscais” – pretexto que usaram para que ela saísse do governo.

4. Racismo: A vizinha branca de André e Antônio os denuncia para o governo e, ao ser questionada, diz que nunca foi racista – inclusive já sofreu por conta de seu cabelo. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva, encomendada pelo Carrefour, aponta que 84% da população percebe racismo, mas apenas 4% se considera preconceituoso. Apesar de abranger 56% da população, pessoas negras ainda sofrem desigualdade salarial, violências e discriminação. Quando inseridos no mercado de trabalho, o preconceito continua, uma vez que 52% dos trabalhadores revelaram que já sofreram racismo.

Agora, confira nossa entrevista com o diretor e elenco de Medida Provisória:

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(Mariana Vianna/Fotografia)

O audiovisual tem o papel de educar, criticar e trazer novos pontos de vista ao mundo. Esse filme, assim como Marighella, sofreu censura da Ancine. O que nós, como sociedade civil, perdemos quando isso acontece?
Lázaro Ramos: Perdemos o poder de escolha porque o povo é soberano, ele que escolhe o que vai assistir e o que vai lhe representar. Nunca podemos nos calar sobre a censura, é um direito que já adquirimos e não vai voltar a acontecer. Além do mais, a censura da arte vem com esse viés ideológico de tentar manipular as pessoas. Isso porque a arte traz reflexão, outras visões de mundo e um espelho sobre nós mesmos e nossos problemas. Nunca podemos perder isso de vista.

Estamos falando de um filme que foi baseado em uma peça de teatro escrita em 2011. O roteiro foi escrito em 2015 com o propósito de alertar sobre problemas e questões que a gente não gostaria que acontecesse. Depois disso, várias delas aconteceram. É um sinal de que não podemos calar debates importantes para a gente melhorar enquanto sociedade e comunidade.

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A medida provisória é implementada com o discurso de reparação histórica e a votação que acontece no filme é parecida com a do impeachment da Dilma. Queria que você comentasse sobre como esse neofascismo de hoje se esconde em nome da moral e bons costumes.
Lázaro Ramos: Se esconde na moral e nos bons costumes e com estratégias que passam pela difusão de fake news. Hoje em dia, falamos muito disso, mas entender como se combate fake news é algo que eu, por exemplo, não sei. Ela se espalha muito rápido e vira uma verdade, é muito perigoso. Todos vimos acontecer com nossas famílias. São coisas que claramente são mentiras, mas acabam formando um pensamento e levando pessoas a fazerem escolhas, como a do atual presidente – que foi uma escolha trágica num ano em que a gente tinha 13 opções. Nosso papel aqui é alertar, chamar atenção e informar o tempo todo. Por isso que o filme foi feito de forma embasada.

Tivemos uma pesquisadora que lia várias cenas que fazia ligações com o momento atual. Ele fala sobre violência urbana, mas as armas que aparecem são em um contexto muito específico e diferente do que foi contado com personagens negros no Brasil até hoje. Essas escolhas todas são feitas para combater o fascismo. O limite da arte faz com que ela não consiga resolver tudo sozinha, mas abre algumas portas.

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“Perdemos o poder de escolha porque o povo é soberano, ele que escolhe o que vai assistir e o que vai lhe representar. Nunca podemos nos calar sobre a censura, é um direito que já adquirimos e não vai voltar a acontecer. Além do mais, a censura da arte vem com esse viés ideológico de tentar manipular as pessoas”

Lázaro Ramos
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(Medida Provisória/Reprodução)

Tem um dado da Ancine que mostra que 97% dos filmes nacionais foram dirigidos por pessoas brancas, quando falamos do elenco e da equipe, essa desigualdade também prevalece. O que falta para termos avanços nesse sentido? Políticas públicas são uma saída possível?
Lázaro Ramos: Faltam políticas públicas e quem conta as histórias se debruçar sobre isso. Nosso filme teve acesso a essa pesquisa e foi feito com esses parâmetros. É o filme brasileiro com maior parte de negros a frente e atrás das câmeras mas não sei se é algo a ser comemorado porque só agora isso aconteceu. Ele tem um protagonismo da mulher negra diferente do que já foi mostrado até então e está aí justamente para trazer esse tipo de discussão. Quero que toda a trajetória e o resultado do filme estimulem os diretores, produtores e investidores a pensarem sobre isso.

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Este é seu primeiro longa na direção. Como sua experiência na atuação influenciou o seu trabalho e como essa experiência vai influenciar sua carreira de ator?
Lázaro Ramos: O ator influenciou para que eu identificasse que cada um tem um estímulo diferente. Muitas vezes, um diretor vinha falar comigo da mesma maneira que falava com outro ator. Compreender a individualidade de cada um vem desse lado. E, mesmo quando estou dirigindo, tenho um pouco de ator porque faço cena e tento fazer com que as pessoas se apaixonem. A forma que me comunico como diretor também é meu lado ator falando.

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(Medida Provisória/Reprodução)

Capitu é uma mulher forte que está grávida, separada do marido e precisa passar por diversas dificuldades para sobreviver. Como foi interpretar essa personagem?
Taís Araújo: Ela está exausta da vida. É engraçado você falar que ela é forte, acho ela super frágil. Ela é obrigada a se fortalecer e tirar de onde não tem para conseguir lutar. É a vida da maioria das brasileiras. E olha que estamos falando de uma mulher com a situação financeira privilegiada, imagina as que não têm esse privilégio?

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O filme mudou o significado de resistência para vocês? Em ano de eleição, a urna também pode ser uma forma de resistir?
Seu Jorge: Estamos empenhados em levar consciência para que as pessoas usem as urnas como forma de resistir. E não só para tirar o presidente, mas também o governador. Também fomos censurados, assim como Marighella e outros filmes LGBTQIA+ e continuamos resistindo. No Lollapalooza, também vimos resistência – onde já se viu barrar a liberdade do artista que sobe lá para cantar e falar o que ele pensa para seu público? A profissão cultural e os artistas estão falando a mesma língua, formando um escudo contra essas influências negativas.

Alfred Enoch: Para mim, o filme propõe um caminho importante e diferente que tem tudo a ver com trabalhar junto. O trabalho coletivo transforma a sociedade e eu acredito que isso seja resistência. Neste ano as urnas, podem, sim, mudar o rumo do país.

“Estamos empenhados em levar consciência para que as pessoas usem as urnas como forma de resistir. E não só para tirar o presidente, mas também o governador. Também fomos censurados, assim como Marighella e outros filmes LGBTQIA+ e continuamos resistindo”

Seu Jorge
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(Medida Provisória/Reprodução)

O filme chega num momento de crise política, sanitária e econômica. Qual é a importância dele chegar exatamente nesse momento?
Seu Jorge: Para mim, é mostrar que não queremos mais esse governo e essa falta de respeito que está acontecendo conosco. Nosso papel como artista é questionar e estamos fazendo isso nos últimos quatro anos. Estamos mostrando que não queremos mais violência, censura e autoritarismo. Acontece que o filme não acusa ninguém, ele simplesmente mostra que se não sentarmos e discutirmos agora, estaremos dando ferramenta para o mal — e ele não descansa.

Mariana Xavier: Nós rodamos o filme em 2019, e lá parecia que esse futuro estava distante. Estava bem recente nossa tragédia política. A gente achava que seria ruim, mas não tanto como está sendo. Infelizmente, nós nos sentimos muito mais próximos dessa distopia do que gostaríamos. Mas a arte tem esse papel de alertar e abrir os olhos das pessoas. No fim das contas está sendo bom que ele seja lançado agora.

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