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Por que o PL 399 dividiu a comunidade canábica brasileira?

O projeto de lei gerou críticas, elogios, muitas dúvidas e até discórdia na cena. Afinal, é possível ver e equilibrar luz e sombra nessa proposta?

por Girls in Green 22 out 2021 00h52
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(Clube Lambada/Ilustração)

O Projeto de Lei 399 “altera o art. 2º da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, para viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação”. Parece legal, não é? Poder popularizar os produtos à base de cannabis no mercado nacional, dando início a uma nova fase de regulamentação que pode se tornar legalização, deveria animar muita gente.

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Entretanto, o oposto aconteceu. Desde que a PL atingiu a mídia, muita gente que está inserida no universo canábico brasileiro teve reações bastante negativas. Mas é que o buraco é mais embaixo, e precisamos entender o que essa lei, se aprovada, pode acarretar não apenas ao usuário – mas também a pacientes medicinais, associações e um outro mundo que, quem acende seu beck em casa, às vezes nem se dá conta que existe.

Afinal, ele veio para ajudar ou atrapalhar as pessoas já envolvidas com essa planta especial?
Nós, que não acreditamos em dualidades, podemos dizer que sim: luz e sombra coexistem nesse projeto, dicotomias são encontradas assim como outras esferas de nossas vidas. Mas precisamos, como sempre, separar o positivo do negativo e enxergar esses lados de maneira mais ampla para a compreensão de forma mais aprofundada sobre o tema!

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(Arte/Redação)
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O que essa PL pretende fazer?
Quem está por dentro das notícias canábicas deve saber que, desde 2015, a importação de produtos cuja maconha é a principal base já são permitidas aqui no Brasil. Mas existem muitos empecilhos que tornam o acesso muito restrito para a maior parte da população: se as papeladas podem ser vencidas pelos mais guerreiros, os preços absurdos figuram uma barreira praticamente impossível de ultrapassar – principalmente em um país onde grande parte da população vive com menos de um salário mínimo. Segundo seus criadores, o principal foco dessa PL é democratizar o acesso à cannabis terapêutica no território nacional, levando tratamento a pacientes com problemas como câncer, epilepsia, dores crônicas, síndromes raras e muitas outras condições. Para o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), a lei ouve o apelo de associações, mães, pais e familiares de pacientes e busca baratear os custos da medicação (que, nas condições atuais, pode ultrapassar os R$ 2.500 por unidade).

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(Arte/Redação)

Ok. Vamos entender esse projeto!
O documento se trata de uma tentativa de regulamentar as atividades de cultivo, processamento, armazenagem, transporte, pesquisa, produção, industrialização, comercialização, exportação e importação de produtos à base de cannabis para fins terapêuticos e industriais no território nacional. As plantas para essas finalidades são destinadas aos produtos derivados de cannabis, fabricados exclusivamente por empresas farmacêuticas, conforme a RDC 327/2019 da Anvisa. Já a produção de cannabis não-intoxicante, com menos de 0,3% de THC, é tratada na lei como cânhamo e é previsto o seu uso de forma industrial.

Quem pode cultivar são pessoas jurídicas, mediante a prévia autorização do poder público. De acordo com essa PL, ainda não é possível plantar por conta própria. Além disso, o governo fica autorizado a fazer o cultivo e a distribuição por meio das Farmácias Vivas do SUS. Associações de Pacientes legalmente constituídas também podem fazer o plantio, a fabricação e distribuição de medicamentos, mas é obrigatória a adaptação às boas práticas das Farmácias Vivas do SUS, que possuem regras “mais simples” que as da indústria. As associações terão dois anos (24 meses) para se adaptar. Quem pode fornecer esses produtos, segundo o projeto, são as farmácias de manipulação, o SUS, as Associações de Pacientes e empresas.

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Ainda de acordo com o projeto, as plantas cultivadas com fins terapêuticos podem ser usadas em produtos regulamentados pela RDV 327/2019 da Anvisa e produtos veterinários. Já o cânhamo tem uma variedade maior de finalidades, que vai desde a indústria têxtil até produtos de construção, cosméticos e outros. O PL classifica as plantas em diferentes grupos. Plantas de maconha com mais de 1% de THC são consideradas psicoativas; já aquelas com menos de 1% de THC são consideradas não-psicoativas. Portanto, os medicamentos à base de cannabis para uso humano são considerados psicoativos se tiverem mais de 0,3% de THC, e o medicamento com teor de THC abaixo de 0,3% é não-psicoativo. Para uso veterinário, só é permitido o uso da cannabis não-psicoativa.

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(Arte/Redação)

Depois de entender tudo isso, vamos à discussão!
Pelo texto apresentado inicialmente, só empresas poderão fazer o plantio, que será liberado mediante autorização do governo. Para controlar a produção, cada empresa terá uma cota de cultivo, além de produção rastreada e com aval de um responsável técnico. A fiscalização ficará a cargo do Ministério da Agricultura. A proposta ainda permite que instituições de pesquisa plantem, cultivem, transportem e armazenem a cannabis, desde que sejam previamente autorizadas. Um dos grandes alvos dos políticos, através da PL, é a economia e o fomento de atividades ligadas ao cultivo e manuseio da cannabis – seja terapêutica ou industrial. Segundo Luciano Ducci (PSB-PR), “a agricultura ganha mais um insumo, que poderá ser exportado para o mundo. O Brasil pode ser um dos líderes deste mercado ao lado dos Estados Unidos e da China”.

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(Arte/Redação)
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Podemos ver isso tudo como lados positivos, certo?
Mas também precisamos enxergar a verdade nas críticas. Uma das principais trazidas por quem se posiciona contra o PL é a falta de disposições sobre o autocultivo – o plantio individual, que pode ser feito na residência de cada usuário, e que pode trazer autonomia a milhares de pacientes. Isso retira das mãos de cada indivíduo o direito de saber exatamente o que está sendo consumido, e coloca essa decisão nas mãos de empresas e da indústria farmacêutica. Seria esse o meio mais saudável de tratar a planta, quando já temos inúmeras associações produzindo óleos medicinais totalmente funcionais?

Outra dura crítica é para as novas regras voltadas justamente às associações, que têm assumido um papel fundamental na distribuição de medicação a pacientes que precisam por todo o território brasileiro. Com tantas burocracias, nem todas terão tempo hábil (ou até mesmo grana) para continuar sustentando suas atividades. Embora traga possíveis avanços, essa lei, se aprovada, também não sana uma de nossas principais preocupações: a reparação histórica pela proibição da cannabis, que aprisionou, torturou e matou inúmeras pessoas (principalmente pretas e periféricas) ao longo dessa trajetória. Isso deixa uma das populações que mais precisam de assistência completamente fora da jogada.

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(Arte/Redação)

Como equilibrar todas essas questões?
Tentamos fazer um exercício que pode ajudar: o quanto nossas críticas, por mais bem fundamentadas, podem barrar algo que pode ser o início de avanços na política de drogas? Reconhecer a cannabis pelo seu valor medicinal e terapêutico, em um país completamente dominado pelo conservadorismo e por bancadas religiosas que acreditam que a maconha é um pecado, já é uma vitória por si só. Normalizar a planta como algo que vemos em farmácias, como Paracetamol ou shampoo anticaspa, pode, sim,  ter o seu valor na quebra de um estigma centenário. O rompimento desse tabu pode ser muito benéfico, embora no momento possa parecer apenas cumprir interesses econômicos de grandes corporações.

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No Brasil, andar a passos de formiga ainda significa andar para frente. Mesmo o autocultivo é uma realidade distante de muitos cidadãos – afinal, se nem todo mundo tem um teto, menos gente ainda tem espaço, estrutura e equipamento para produzir o que consome. A distribuição através do SUS, pelas Farmácias Vivas, pode garantir uma introdução mais abrangente da cannabis no meio de quem não tem nem informação e nem lugar para se tornar independente em um primeiro momento. Em um país onde nem todos têm casa, menos pessoas ainda têm acesso à informação de qualidade e conhecimento sobre essa substância.

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(Arte/Redação)

Não há uma solução simples para esse problema: as pessoas vão continuar fumando, plantando, sendo presas, e essa política ainda vai continuar servindo ao controle de corpos e populações específicas. Quanto a isso, lamentamos: temos pouco a comemorar. Mas, sem ela, o que teríamos a celebrar, de qualquer forma?

Acreditamos que o cenário da proibição brasileira, que começou antes de qualquer outro país (inclusive de Nixon e de suas campanhas de desinformação), não vai mudar apenas com uma lei. Mas podemos, sim, enxergar a luz, mesmo que ínfima, nas tentativas de normalizar o que, para nós, canábicos, já é uma realidade. Não podemos medir o olhar do outro pela nossa régua, e a realidade que vivemos pode sim ser base para a formação de inúmeras críticas.

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Mas, acima de tudo, acreditamos em um debate temperado. E aí, vamos conversar abertos às possibilidades? Nem tudo são flores – mas podemos sorrir com os pequenos botões que surgem no nosso jardim.

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