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Maconha vicia?

Podemos desenvolver relações tóxicas com substâncias. É preciso analisar esse fenômeno a partir de um olhar histórico e psicológico

por Girls in Green Atualizado em 2 dez 2021, 17h16 - Publicado em 1 dez 2021 01h52

Você já deve ter ouvido o termo “dependência química” a torto e a direito por aí. E sabemos que esse assunto é sério e muito real na nossa sociedade. Mas acreditamos que precisamos mudar um pouquinho o foco quando começamos a falar sobre esse assunto. Por exemplo, para o médico canadense e autor Gabor Maté, a chave para compreender esse complexo fenômeno não é discutida com a devida atenção necessária – assim, existe uma culpabilização apenas da substância.

De acordo com ele, se quisermos entender a dependência, precisamos entender as dores e traumas de um indivíduo que se ocupa demasiadamente com o uso de substâncias. Afinal, esse uso de substâncias geralmente vem associado a uma sensação de controle, de paz, de calma muito temporária. Mas poucos se perguntam por que essas sensações estão em falta na vida desses indivíduos. O que aconteceu para ele chegar nesse ponto?

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Então, a maior pergunta em relação ao tema não é o porquê da dependência, mas o porquê da dor.

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Acreditamos que precisamos começar desconstruindo o termo “dependente químico”, que responsabiliza apenas a substância – seja a maconha ou qualquer outra – no desenvolvimento dessa condição. Também é necessário entender que, embora muitas pessoas pensem que sim, a dependência não é uma escolha, não é necessariamente genético, e não se restringe apenas às substâncias.

A maior pergunta não é o porquê da dependência, mas o porquê da dor. Acreditamos que precisamos começar desconstruindo o termo “dependente químico”, que responsabiliza apenas a substância – seja a maconha ou qualquer outra – no desenvolvimento dessa condição

Vamos entender melhor esse assunto para analisar a questão de forma mais abrangente do que apenas usar a saída fácil e responder sim ou não. Vem com a gente!

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(Uso experimental: pode acontecer por vários motivos, desde a curiosidade até pressão por grupo de amigos e busca de aceitação social/João Barreto/Ilustração)

Uma pequena história da “dependência”

O professor doutor Henrique Carneiro, historiador brasileiro que traz um resgate muito completo sobre questões relacionadas às drogas no Brasil, também discorre sobre a construção do “vício” na nossa sociedade. Você sabia que, antes do século XIX, não se falava em adições e dependências, e sim em hábitos?

O vício foi considerado uma doença pela primeira vez em 1804, quando Thomas Trotter publicou o Essay Medical Philosophical and Chemical on Drunkenness, tido como um marco na descoberta (ou criação) desse conceito. Para ele, o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente”. A comunidade médica, durante o século XIX, passou então a se dedicar ainda mais em descobrir e entender os efeitos e os usos das drogas, além do isolamento de substâncias puras, como morfina, codeína, atropina, cafeína, heroína e mescalina. Assim, a atividade experimental controlada passou a ser mais fácil.

Sabia que, antes do século XIX, não se falava em adições e dependências, e sim em hábitos? O vício foi considerado uma doença pela primeira vez em 1804, quando Thomas Trotter definiu o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente”

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(Uso ocasional ou esporádico: já não é mais experimental, pois o usuário conhece os efeitos da substância. Mas seu uso é mais controlado e limitado a contextos específicos, como shows e festas/João Barreto/Ilustração)

Mas essa época também foi marcada por um aumento da intervenção higienista do Estado nessa área, desde a medicalização de populações específicas até acordos e imposições epidemiológicos com o objetivo claro de atingir a eugenia social e racial. Havia tentativas de evitar a deterioração racial supostamente causada pelos degenerados hereditários, entre os quais se incluíam em um lugar de destaque os viciados e bêbados.

E o mais maluco é que, ao mesmo tempo em que existia um esforço enorme em coibir certos tipos de substâncias, a extensa popularização de outras dava forma a um enorme paradoxo – que ainda é cultivado até hoje. Na concepção de Carneiro, as “tecnologias sociais” passaram a ser teorias da propaganda e, no que se refere às drogas, serviram tanto para incentivar a sobriedade como para condicionar o consumo compulsivo!

A partir daí, foi desenvolvida não apenas uma demonização de substâncias, com legislações cada vez mais proibicionistas – como a terrível e falida Guerra às Drogas, mas também a exploração das mesmas pelo capitalismo como bens de consumo. Até hoje, podemos ver os frutos da monetização da ideia do vício – com remédios milagrosos contra o tabagismo e outras adições, até clínicas e instituições com métodos bastante questionáveis. Tudo isso nos faz pensar que a sociedade, ao mesmo tempo, lucra com o que diz combater, e falha em encontrar um modo digno de lidar com as pessoas que precisam de um verdadeiro apoio. É nós por nós – como sempre!

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(Uso habitual: já é um uso mais frequente, que pode ser semanal ou até diário. Ele não é mais restrito a situações sociais. Embora possa causar alguns desconfortos, a substância não afasta as pessoas de suas relações e obrigações sociais, como estudos, trabalho e relacionamentos afetivos/João Barreto/Ilustração)

Mas o ponto é como se chega lá

Para Maté, nós olhamos a dependência como um problema isolado, e não como um sintoma mais aprofundado de um complexo fenômeno humano. A raiz desse comportamento normalmente pode ser traçada a partir de traumas, que, não tratados da maneira correta, podem trazer dores e um grande desconforto psicológico. Esse é um dos motivos para o indivíduo passar a tentar encontrar, em substâncias ou ações, um alívio momentâneo.

Até hoje, podemos ver os frutos da monetização da ideia do vício – com remédios milagrosos contra o tabagismo e outras adições, até clínicas e instituições com métodos bastante questionáveis. Tudo isso nos faz pensar que a sociedade, ao mesmo tempo, lucra com o que diz combater

A dependência pode estar em qualquer comportamento que traga um prazer temporário, e que o indivíduo passe a desejar com muita intensidade. A pessoa, então, também começa a sofrer com os resultados posteriores, mas não deixa de correr atrás desse desejo (por não desejar ou conseguir) apesar das consequências ruins. Isso pode incluir drogas, álcool, substâncias de todos os tipos – mas não só elas.

Pessoas também podem ficar dependentes de sexo e pornografia, a jogos de azar e apostas, a compras, ao trabalho, a poder político, açúcar, café, a jogos online… Praticamente todas as atividades e muitos compostos podem ser viciantes, dependendo da nossa relação com elas.

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Qualquer dependência, portanto, se baseia nessa dinâmica: dor, desejo, alívio e consequências negativas. É como se fosse uma forma não saudável de lidar com algo profundo e de grande complexidade. Ou seja: uma relação tóxica.

É a partir dessa perspectiva que conseguimos entender um pouco melhor que sim, a cannabis pode viciar – não necessariamente quimicamente. Mas o mais importante é agir em cima da dor que traz esse comportamento – e não apenas na criminalização, culpabilização ou punição do comportamento em si.

Qualquer dependência se baseia na dinâmica: dor, desejo, alívio e consequências negativas. É como se fosse uma forma não saudável de lidar com algo profundo e complexo. Ou seja: uma relação tóxica. É a partir dessa perspectiva que conseguimos entender um pouco melhor que sim, a cannabis pode viciar – não necessariamente quimicamente

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(“Dependência”: o uso já não está relacionado ao prazer que a substância causa, mas sim ao desprazer que sua falta traz. Ela passa a ser o centro da vida do usuário, que pode se desvincular de relações, estudos, trabalho, prejudicando sua vida cotidiana/João Barreto/Ilustração)

Fumar mais que um?

O uso da maconha pode levar ao desenvolvimento do uso problemático, que assume a forma de dependência – e, caso essa utilização seja interrompida, é possível observar, sim, alguns sintomas de abstinência. Dados recentes sugerem que 30% daqueles que usam maconha podem ter algum grau de dependência, e que pessoas que começam a usar maconha antes dos 18 anos têm quatro a sete vezes mais probabilidade de desenvolvê-lo do que os adultos.

Pessoas que usam a erva frequentemente relatam que, ao interromper o uso, sentem: irritabilidade; mau humor; dificuldades para dormir; diminuição do apetite; desejos; inquietação e/ou várias formas de desconforto físico.

Dados recentes sugerem que 30% daqueles que usam maconha podem ter algum grau de dependência, e que pessoas que começam a usar maconha antes dos 18 anos têm quatro a sete vezes mais probabilidade de desenvolvê-lo do que os adultos

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Esses sintomas atingem o pico na primeira semana após parar de fumar e duram até 2 semanas. A dependência acontece quando o cérebro se adapta a grandes quantidades da substância, reduzindo a produção e a sensibilidade aos seus próprios neurotransmissores endocanabinoides.

Uma relação problemática pode surgir em relação a praticamente todo tipo de hábito – e até mesmo em relacionamentos, sejam amorosos, familiares ou de amizade. Estamos suscetíveis a isso, principalmente quando não tratamos corretamente o que nos traz dor.

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Como a redução de danos pode ajudar

O conceito de redução de danos nasce justamente para trazer um olhar mais humanizado aos indivíduos que sofrem em relações problemáticas com alguma substância. Sua mentalidade parte do pressuposto de que o uso de substâncias sempre vai existir, mas que os indivíduos devem ter total noção de como elas podem afetar a sua vida – evitando, através do conhecimento, uma possível adição.

Ao contrário das formas de cuidado apresentadas dentro da política proibicionista, que se baseia na repressão e punição de usuários de drogas ilícitas, bem como tratamentos baseados na abstinência – a RD é uma proposta metodológica de cuidado em saúde. Isso tem como objetivo a redução de riscos e danos em relação ao complexo fenômeno do consumo de drogas, sejam elas ilícitas ou não.

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(Veneno ou remédio?/João Barreto/Ilustração)

Essa ótica se desenvolve através de um conjunto de práticas relacionadas ao cuidado e bem-estar dos usuários, pois sabemos que as pessoas podem ter diferentes formas de se relacionar com as drogas, e o uso delas não é certamente problemático. Por isso, além da distribuição de materiais para uso seguro, informação e educação do usuário a partir do respeito à autonomia de cada um, a Redução de Danos também estuda terapias de substituição – na qual a cannabis é muito usada.

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Sabia que, no mundo todo, a redução de danos traz números de sucesso na prevenção a overdoses? Ela é utilizada como porta de saída de substâncias como o álcool, os opioides e até mesmo o crack

Você sabia que, no mundo todo, ela já é pesquisada e traz números de sucesso na prevenção a overdoses? Ela é utilizada como porta de saída de substâncias como o álcool, os opioides e até mesmo o crack. Isso porque os seus riscos são mais baixos, e ela acaba também reduzindo os sintomas de abstinência e fissura.

A verdade é que a situação da adição é difícil, mas pode ser tratada – principalmente quando há uma atenção maior ao indivíduo, e não apenas à substância com a qual ele está envolvido. Afinal, não dá para esquecer da famosa frase de Paracelso: a diferença entre remédio e veneno pode ser, muitas vezes, a dose. Buscar ajuda, seja em profissionais ou em pessoas que você confia, é essencial para encontrar um meio termo saudável no uso.

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(João Barreto/Ilustração)
Entendendo os padrões de uso

​Embora a dependência tenha sido um assunto que trouxe tantas discórdias, não podemos negar que ela existe; seus fatores apenas não são os mesmos que pensavam os médicos higienistas de alguns séculos atrás. Para compreender melhor esse fenômeno, não podemos deixar de mencionar a identificação de padrões de uso de substância – que coloca a dependência como um ponto que pode sim ser atingido por qualquer usuário.

Aqui, vamos utilizar as definições que o doutor em psicologia da educação e professor da PUC-SP Marcelo Sodelli pontua em seu livro Uso de Drogas e Prevenção. De acordo com ele, existem quatro principais padrões de uso:

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Uso experimental: pode acontecer por vários motivos, desde a curiosidade até pressão por grupo de amigos e busca de aceitação social.

Uso ocasional ou esporádico: já não é mais experimental, pois o usuário conhece os efeitos da substância. Mas seu uso é mais controlado e limitado a contextos específicos, como shows e festas.

Uso habitual: já é um uso mais frequente, que pode ser semanal ou até diário. Ele não é mais restrito a situações sociais. Embora possa causar alguns desconfortos, a substância não afasta as pessoas de suas relações e obrigações sociais, como estudos, trabalho e relacionamentos afetivos.

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“Dependência”: o uso já não está relacionado ao prazer que a substância causa, mas sim ao desprazer que sua falta traz. Ela passa a ser o centro da vida do usuário, que pode se desvincular de relações, estudos, trabalho, prejudicando sua vida cotidiana.

Nós acreditamos que, por trás de uma adição, existe algo muito maior do que nos fizeram acreditar, desde cedo, no modelo proibicionista. E você?

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por João Vitor Barreto. Confira mais de seu trabalho aqui.

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