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Que escola queremos?

Investigamos a dificuldade da aplicação da lei que colocou História e Cultura Afro-brasileira no ensino fundamental de todo país

por Thaís Regina Atualizado em 9 ago 2021, 19h26 - Publicado em 9 ago 2021 00h36
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(Clube Lambada/Ilustração)

m pesquisas acadêmicas, livros inquietantes e planos políticos, no punho de caligrafias plurais e com destinos diferentes, essa reportagem já foi escrita. Ainda assim, sua urgência arde na sociedade brasileira de 2021. Não existe Brasil sem África; no entanto, nas salas de aula, o negro ainda é estudado como sujeito “a-histórico”, cuja trajetória se inicia em solo latino-americano como escravizado (ou pior: escravo). Mudar esse cenário depende de muitas iniciativas, e todas envolvem entender e discutir as tensões do tecido social que aplica, recebe e produz conhecimento – este tipo de renovação só é possível através de políticas públicas. Segundo a doutora em Ciência Política Sonia Fleury, além de planos e tomada de decisões, fazer uma política pública exige um consenso sobre seus objetivos, o que atravessa um processo histórico de atores políticos, com suas disputas – sobretudo ideológicas – pelo poder. “Neste processo de luta”, prossegue Fleury, “diferentes atores se enfrentam e reconstituem suas identidades”.

“Sabe o que me estimulou a fazer História?”, provoca Janete Ribeiro, de 57 anos, educadora e pensadora da tríade – escola básica, movimento negro e ensino acadêmico. “Em 1911, João Batista de Lacerda foi representar o Brasil no Congresso Internacional das Raças e escreveu um relatório no qual aponta que em 100 anos não teria negros na população brasileira. Seria 2011, né? Em 2011, nós já éramos mais de 50% da população do Brasil”, elabora. “Em 1911, as políticas de extermínio e perseguição ao povo negro eram muito intensas. O que essa gente fez para sobreviver? Onde estava essa gente? Quais foram essas estratégias? Me parece que este é o conteúdo fundamental para as escolas.”

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Janete já acompanhava a pauta de educação dentro do movimento negro há pelo menos uma década, quando foi aprovada a Lei nº 10.639, em 2003. Ainda não era professora, mas tinha um papel significativo como ativista e afirma que a educação é uma questão histórica da militância – desde os jornais negros até experiências práticas de educação informal, como Teatro Experimental do Negro, idealizado por Abdias Nascimento. Quase vinte anos depois da lei que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira em território nacional, por que essa ainda não é uma realidade das escolas? E como transformar este campo?

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“As pessoas vão dizer: formação. Só que se investe uma fortuna em formação e ela não chega à base”, expõe Janete. Com décadas voltadas à militância e defesa da educação básica, a professora carioca tem orgulho de se lembrar da sua movimentação durante os anos 1990 ao lado de outras figuras icônicas do movimento negro brasileiro, como Beatriz Nascimento e Azoilda Trindade Loretto, militante que a inspirou na jornada da educação e é reconhecida pelo seu estudo dos valores civilizatórios afro-brasileiros.

“Em 1911, as políticas de extermínio e perseguição ao povo negro eram muito intensas. O que essa gente fez para sobreviver? Onde estava essa gente? Quais foram essas estratégias? Me parece que este é o conteúdo fundamental para as escolas”

Janete Ribeiro, educadora
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A educadora Janete Ribeiro (Pétala Lopes/Fotografia)
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Atualmente, Janete também usa seu tempo livre para descobrir uma veia artística que por muito tempo nem sabia que tinha. “Racismo faz isso: pressiona a gente a se fechar para nossos talentos – e a escola também age assim, viu? Isso é uma das coisas que eu tenho trabalhado muito com as minhas turmas: autoestima e protagonismo”, conta, “Se a gente conseguisse implementar a lei, a cena seria diferente porque essa lei é sobre autoestima e protagonismo negro na escola.” No entanto, desde 2003, a lei nº 10.639 permeia a rede de ensino como um ponto opcional da grade, ou então é promovida como uma aula extra, sem a mesma atenção, cuidado e profundidade que a disciplina de História (da Europa).

Mas, se já foi aprovada a lei, produzido e distribuído o material escolar, o que falta? Janete advoga pelos dois lados: professor e aluno. Por um lado, quem leciona na escola básica não é valorizado; por outro, os estudantes são os maiores prejudicados, independente de onde reside o problema. “Olha, há investimento no programa do livro didático, no material de literatura e na biblioteca da escola, mas essa produção chega na escola com um roteiro de como o professor deve usar sem que o professor seja chamado para construir o material. Quem constrói o material não esteve na sala de aula, logo não entende os enfrentamentos diários que a gente tem”, diz Janete.

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(Pétala Lopes/Fotografia)
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“Toda vez que se fala do fracasso da aplicação da lei, o professor é responsabilizado. O gestor não é”, dispara. “Esse professor que está se dividindo entre quatro ou cinco escolas não foi visto em sua potência, entende? Me parece que valorizar o profissional e a comunidade dele é um dos grandes desafios para a implementação da lei – dialogar com quem esse cara é, não dizer quem ele deveria ser, porque é nesse momento em que se cria uma resistência à mudança.” Além disso, Janete afirma que a forma de se tratar o conteúdo deve dialogar com o cotidiano da escola básica, o que vai muito além de um material teórico. A professora propõe uma política pública de educação das relações raciais, a qual ouça professores, alunos e territórios. Assim, as estratégias seriam adaptadas à prática e às necessidades, não o contrário.

No artigo Políticas Sociais e Democratização do Poder Local, a cientista política Sonia Fleury afirma que “as políticas sociais, muito mais que simplesmente ser um instrumento para possibilitar o acesso a um bem ou serviço (cesta básica, escola etc.) são um poderoso mecanismo para forjar a sociedade que queremos criar, definindo as condições de inclusão na comunidade de cidadãos.” A Lei 10.639 caminha junto com esta máxima, porém seus meios de atuação não permitem seu pleno desenvolvimento. Segundo Janete, a educação básica no Brasil ainda funciona na ideia de que quem produz o saber é a universidade e tanto professores como estudantes só precisam se apropriar da mercadoria chamada conhecimento – o tal do decoreba. Ainda segundo a professora carioca, essa dinâmica torna nítida qual é a finalidade projetada sobre a educação brasileira: a ascensão social. Com outras estratégias, no entanto, a educação poderia ser um caminho de transformação social radical – e é este tipo de educação que Janete decidiu nutrir.

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(Pétala Lopes/Fotografia)
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“A educação brasileira ainda está no século XIX, na domesticação dos corpos”, revolta-se, “A lei nº 10.639 fala de uma outra perspectiva, sabe? De trazer a cultura viva. Pensa comigo: o menino cresce vendo o pai mestre-sala e a mãe porta-bandeira, vê esse movimento da escola de samba, aprende tudo sobre a escola de samba mirim e na sala de aula não consegue aprender o que está sendo ensinado. Por que isso acontece? Porque a lógica da escola não é a lógica que ele vive no mundo. Esta cultura não é valorizada na escola e, quando é, tem um verniz de folclore ou exótico. O estudante cria resistência. Você não criaria?”

“A educação brasileira ainda está no século XIX, na domesticação dos corpos”

Janete Ribeiro, educadora
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Investida e revés

Regina Amaral tem 23 anos e é estudante de Geografia na Universidade São Paulo (USP); de 2016 a 2018, ela cursou Artes Cênicas e, através do sistema de bolsas da USP, que estimula os estudantes a trabalharem em projetos que envolvam a universidade, Regina se tornou contadora de histórias para o ensino fundamental da Escola de Aplicação da USP. O objetivo da disciplina era incentivar a leitura e criar um espaço lúdico em que os alunos tivessem contato com a literatura. Para Regina, uma apaixonada pelo poder que narrativas têm de atravessar pessoas e expandir visões de mundo, passar neste processo seletivo foi motivo de muita alegria.

A rotina era puxada, mas saborosa. No começo de todo mês, Regina conduzia pesquisas na biblioteca da escola e selecionava as histórias que gostaria de contar; então, montava um plano de aulas, sempre buscando tornar a exposição um momento interativo, muitas vezes se valendo da música para atrair a atenção das crianças. Regina preparava a sala e, em sessões de menos de uma hora, crianças desciam para a biblioteca, sentavam em um tapete, geralmente em roda, e ouviam a história do dia – em seguida, Regina recomendava os livros.

A disciplina se provou bem sucedida e, assim, as turmas foram crescendo. Em determinado momento, a estudante de Artes Cênicas contava histórias para todas as turmas do primeiro ao quarto ano da Escola de Aplicação. “Como existem algumas histórias que são mais contadas, como de príncipes e princesas, eu tentava trazer contos diversos. Escolhi muitas histórias chinesas, japonesas, árabes, brasileiras e também africanas”, relembra. “Entre os livros preferidos, tem uma coletânea do Nelson Mandela que se chama Meus Contos Africanos, com fábulas divertidíssimas; também um conto do livro As Mais Belas Páginas da Literatura Árabe, o qual fala sobre um príncipe e um leão, deixava elas fascinadas! E tem um outro livro de contos populares brasileiros, organizado por um contador de histórias interessantíssimo, o Giba Pedroza; neste, tem um conto chamado ‘O Causo do Bichão’, as crianças amavam!”

“A escola tem uma proposta de atender toda comunidade local e, por isso, os pais têm bastante acesso à escola”, conta Regina, “Durante as contações de histórias, eu trazia muitos instrumentos: pandeiro, flauta, violão e a própria escola tinha um atabaque. Gostava muito de usar o atabaque porque é um instrumento grande, robusto, chama muito a atenção e centraliza as dinâmicas em torno dele. Mas também pelo fato de que boa parte das crianças ali eram negras, então, sempre achei que trazer elementos da cultura afro-brasileira iria contribuir para o nosso diálogo. Algumas crianças já tinham um estranhamento, uma relação esquisita, com um olhar já construído de preconceito com o instrumento – mas, era raro. Na maior parte, tinham muito interesse e queriam bater a qualquer custo, a gente até combinava de ter um toque de tchau quando acabava a aula! Era bem gostoso, as crianças sempre chegavam muito empolgadas; embora fosse complicado direcionar essa energia para a contação de histórias, no geral, era bem divertido e eu construí relações de bastante carinho.”

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Tudo corria bem, até que um bilhete na agenda de dois alunos e uma conversa de corredor entre a bibliotecária e Regina mudaram o tom das aulas. “Foi logo depois de uma atividade com uma das turmas, a responsável da biblioteca me chamou e contou que dois pais tinham ido reclamar a respeito da disciplina de contação de histórias, alegando que eu estava abordando histórias de monstros, dizendo coisas que não eram pertinentes à religião cristã e que seus filhos estavam assustados”, desabafa Regina.

Havia uma incongruência entre a recepção dos estudantes e as alegações dos pais. A posição da escola foi como conciliadora – e a recomendação dada para Regina foi para que ela tivesse mais cautela na escolha das histórias e que deixasse de utilizar o atabaque por um tempo. “Não houve nenhuma ocorrência durante a contação de histórias. A história em questão não era nem de terror, era uma história engraçada, a qual envolvia a cultura bantu. Eu tentei explicar…e as crianças pareciam tão empolgadas… Mesmo assim, duas dessas crianças levaram as histórias para casa e os pais as associaram diretamente à religião de matriz africana e associaram isto também a questões demoníacas.”

“Foi logo depois de uma atividade com uma das turmas, a responsável da biblioteca me chamou e contou que dois pais tinham ido reclamar a respeito da disciplina de Contação de Histórias, alegando que eu estava abordando histórias de monstros, dizendo coisas que não eram pertinentes à religião cristã e que seus filhos estavam assustados”

Regina Amaral, estudante
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A estudante Regina Amaral (Pétala Lopes/Fotografia)

A liberdade que Regina sentia se embrulhou. Segundo ela, foi neste momento em que sentiu que, enquanto profissional da educação, uma das suas principais obrigações era não desagradar certas pessoas. Ela começou então a buscar inspiração em contos de fada. “O problema é que você limita o alcance das crianças ao mundo do conto, que é extremamente diverso”, problematiza, “Existem milhões de personagens e nem todos vão ser bons, existem monstros, coisas assustadoras e também coisas desconhecidas que não são ruins. E é triste também porque a maioria das crianças negras com quem eu tive contato evidentemente não sabem de onde a família veio. Se não for por medidas educativas, dessa ou de outra natureza, essas crianças vão seguir sem ter contato com a África, com a cultura que deu origem a nossa própria cultura e que elas herdam de alguma forma. Me parece extremamente injusto que seja permitido contar histórias japonesas e italianas, mas que o assunto africano seja automaticamente lido como demoníaco porque, no fundo, isso associa a negritude a algo demoníaco. Para uma criança, isso é muito triste – tanto nunca ouvir falar de si quanto ser sempre a parte assustadora das histórias.”

A crítica racista veio como uma bigorna. Além da violência aos estudantes, era também uma violência à Regina, enquanto profissional e sujeito. “Uma das minhas maiores urgências de contar essas histórias era porque eu só fui saber delas na faculdade. Eu só fui saber de Anansi, das milhares de histórias maravilhosas que vem da Guiné Bissau e, até mesmo eu que cresci em uma religião de matriz africana, só fui entender melhor a mitologia dos orixás quando mais velha. E tem livros muito bons sobre isso, escritores incríveis, as conexões são tantas…mas, infelizmente, as crianças não têm acesso a isso porque existe uma censura invisível que impede esse assunto de ser tratado.”

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Janete Ribeiro compartilha da indignação de Regina, mesmo sem se conhecerem. “Para trabalhar com a aplicabilidade da lei, você vai ter que falar sobre religiosidade afro-brasileira. E o professor marxista vai dizer que é coisa de lumpemproletariado, já o professor evangélico vai dizer que é coisa do diabo. Ambos concordam: não entra na escola porque a escola é laica. Mas, a escola não é laica quando trabalha com institucionalização da igreja, não é laica quando trabalha reforma e contrarreforma, nem é laica quando trabalha islamismo. Me parece que a aplicabilidade da lei cobra toda uma comunidade, não?”

Entre as duas entrevistas, Janete contou à reportagem que em todas as escolas nas quais trabalhou até hoje sempre foi confrontada com uma relativização do racismo por parte dos seus colegas. Esta disputa de narrativa – que se faz presente dos suspiros aos comentários de canto, como “Ela só fala disso” – gera sofrimento. Mas, para quem luta por uma educação antirracista desde os anos 1990, disputar esta narrativa diariamente na escola básica é nutrir a ideia de um ensino como pivô de transformação social. “A gente está falando de uma sociedade em que as crianças que estão submetidas ao racismo e pensam que é natural ou então é o preço que se paga para ser alguém”, dispara Janete, “Por isso que a Azoilda Trindade Loretto defendia o afeto: o professor precisa afetar-se com o outro; tem quem educa e não percebe a importância do que faz. Para fazer valer, a lei é um movimento de estrutura da base.”

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“A escola não é laica quando trabalha com institucionalização da igreja, não é laica quando trabalha reforma e contrarreforma, nem é laica quando trabalha islamismo”

Janete Ribeiro, educadora
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(Pétala Lopes/Fotografia)
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Uma luta histórica

Em agosto de 1991, o Fórum de Educação de Niterói acolheu o tema Educação e Identidade; o texto que resulta deste encontro está disponível no livro A África na Escola Brasileira (1991), publicação do gabinete do senador Abdias Nascimento. Um dos questionamentos do Fórum de Niterói é tão atual que dá a impressão de ter sido dito em alguma live sobre o assunto; a Comissão de Educação escreve: “A escola atual precisa renovar-se com estudos e pesquisas e desenvolver no seu âmago um respeito maior à criança e ao jovem que tem no seu bojo. O atendimento e o entendimento do aluno de origem africana hoje são desrespeitosos e apresentam falhas pedagógicas. Qual o professor que ensina a verdadeira história do negro? Qual a escola que estuda profundamente o continente africano? Qual a escola que reflete e se prepara para que não haja tanta evasão do povo negro estudantil?” A comparação de um texto de 1991 com carências de 2021 demanda cuidado: a lei nº 10.639 é um grande avanço na pauta da educação. Mas também, trata-se de uma política que precisa de novas estratégias para atingir o impacto desejado.

O movimento negro hoje constrói exemplares espaços de educação não formal, como a escola Winnie Mandela em Salvador, gerida pela organização política Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, ou a articulação da UNEafro em vários estados – porém, essa movimentação não começa nos anos 2000. Janete conta que, além de congressos e reuniões, seu projeto com Azoilda Loretto, DIálogo Entre Povos, já se empenhava em ações práticas nos anos 90; uma delas era uma atividade extracurricular chamada Passeio Étnico, o qual consistia em visitar pontos do Rio de Janeiro que eram importantes para a história negra da cidade. “Este passeio surgiu como premiação de um concurso de redação organizado pelo jornal Maioria Falante”, diz, “É esse movimento negro educador do Rio de Janeiro que a gente construiu, sem dinheiro nenhum, tudo na base da militância. O PT sistematizou algo que já vinha se construindo ao longo do tempo, em um governo progressista isto foi visto por quem estava no poder. A lei só pode ser entendida como uma conquista da luta histórica do movimento negro.” Porém, quando a lei é aprovada, o movimento negro não é inserido do ambiente da escola básica – seja no diálogo com professores, seja no contato com estudantes.

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A pesquisadora Aza Njeri (Pétala Lopes/Fotografia)

Correndo junto

Em 2017, Aza Njeri começou uma formação chamada Indezi, África e diáspora. Njeri tem 35 anos, formou-se em Letras e pesquisa África há 18 anos, com mestrado e doutorado em Literatura Africana e pós-doutorado em Filosofia Africana. Curiosamente, a formação não surgiu por uma vontade da pesquisadora, mas por um pedido de caros amigos da graduação. “O que foi esse curso de quatro anos atrás: amigos meus estavam desesperados com a lei nº 10.639”, relembra, “Eu sou de uma geração que fez graduação de 2003 a 2006, de forma que, em 2017, todos meus amigos já estavam empregados, em sala de aula e lidando com as exigências de uma sala de aula. Eu era a única pessoa que eles tinham proximidade para pedir ajuda – porque eles não tinham esse conteúdo para dar.”

Aza conseguiu uma sala com o Denegrir, importante coletivo negro da UERJ, abriu uma inscrição, a qual cobrava vinte reais por estudante; dinheiro que foi usado para cobrir os custos de transporte da professora e para o caixa do coletivo. “Não virou uma renda para mim porque naquele momento era tudo na militância”, conta, “Dei essa formação, repeti o formato mais duas vezes no Rio, três vezes em São Paulo, mas sempre no circuito militância. Sempre com ajuda de custo, falando com a Biblioteca Assata Shakur, uma biblioteca preta comunitária de São Paulo da qual eu sou madrinha.”

Com a pandemia, Aza transformou essa formação para professores em algo mais amplo e que abarcasse todo o conhecimento que ela já passava; o nome do encontro trimestral passou a ser África e Diáspora: Caminhos Pluriversais. “Tento apontar caminhos para a humanidade. O primeiro dia eu chamo de ‘O que a escola tinha que te ensinar, mas não te ensinou’”, dispara. “Apresento as bases epistemológicas bem rapidamente e faço um percurso histórico, do surgimento do homem na África à imigração dele para outros territórios – eu explico, por exemplo, o motivo da mudança genética, por que o nariz afina, a pele embranquece e o cabelo se modifica. O curso começa aí e eu vou até 2020, historicamente. É uma porrada.”

Trata-se de um panorama que passa pela história africana clássica, com Kemet, Kush, Axum, antigo Egito e antiga Etiópia. Impérios de Oyo, Benin, Zimbábue e Gana também são contemplados. Depois, o processo de desumanização conduzido pelos europeus e a escravidão. A aula de teoricamente três horas – que sempre rende mais – termina com a diáspora brasileira. No segundo dia, Njeri traz imagens culturais do ocidente, cultura pop e analisa a semiótica que atravessa nossas vivências contemporâneas. “No primeiro dia eu te localizo e no segundo dia eu te empurro para pensar, até porque é através desse poder semiótico que a educação, a arte e a filosofia produzem na gente que a gente se desumaniza”, declara.

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“No primeiro dia eu te localizo e no segundo dia eu te empurro para pensar, até porque é através desse poder semiótico que a educação, a arte e a filosofia produzem na gente que a gente se desumaniza”

Aza Njeri, pesquisadora
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(Pétala Lopes/Fotografia)

Outro detalhe curioso é que Njeri se baseia no tempo histórico africano, o qual difere do tempo judaico cristão. Por exemplo, enquanto a Idade Média é vista como tempo de perseguição, guerras e obscurantismo (e realmente o foi na Europa), essa mesma época foi a Era do Mercantilismo na África, um tempo de muita riqueza e trocas no continente. “O tempo histórico atual corresponde ao Renascimento Africano. A História Africana da Unesco usa esta contagem temporal e o século XX e XXI chama-se de Renascimento Africano. Eu termino a formação falando sobre isso, para a gente perceber quais são os indícios de que o Renascimento Africano está acontecendo agora.”

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Das estratégias que desafiaram o desaparecimento da população negra à valorização de um movimento artístico, filosófico, cultural contemporâneo: tudo deveria estar nas escolas. Fazê-lo não é simples, mas nós temos um bom caminho que já foi andando. É preciso que toda uma comunidade, que envolve professores, pais e estudantes, esteja comprometida. Mas também, faz-se necessária toda uma estrutura que ouça esta comunidade e dê os instrumentos para que ela funcione. É preciso continuar a luta pela escola básica. “Uma educação antirracista é antenada com os movimentos sociais e de promoção da igualdade, da cultura, do povo”, acredita Janete, “Uma educação antirracista passa por um projeto político de valorização da vida, do ser humano – contemplado em toda sua diversidade.”

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Pétala Lopes. Confira mais de seu trabalho aqui.

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