O Brasil ainda tem uma das menores expectativas de vidas para travestis e mulheres trans. Para elas, o que significa chegar na velhice?
por Uma Reis SorrequiaAtualizado em 20 dez 2021, 17h40 - Publicado em
21 nov 2021
22h45
uando a vi pela primeira vez, tive a singela sensação de estar diante de minha avó paterna, Amélia, tanto por ambas serem parecidas física e emocionalmente quanto pela atmosfera de sua casa, a disposição dos móveis, a penteadeira cheia de produtos cosméticos e de beleza, a fruteira carregada de cores, o modo em que se dirigia a mim, que foi me recebendo, esquentando a água, servindo a mesa, e, o mais simbólico: a disponibilidade e a vontade de contar sua história de vida em meio ao som e o aroma do café coando, uma colherada de açúcar e a boca cheia da fatia de pão com margarina e frios, uma tradição e costume de gente do interior e simples, acredito eu. De modo idílico e romantizado, admito, uma das características que associo às velhices, no plural, é o gosto por contar histórias.
Essa é a história de Camilla Moretty Rodrigues da Silva, 62 anos, mulher transexual, branca, leonina, nascida em São Gotardo, no Triângulo Mineiro, em 21 de agosto de 1959, e criada na zona rural entre Franca e Cristais Paulista, interior de São Paulo.
Confesso que, enquanto uma jovem travesti no auge de seus 25 anos, gostaria de escutar mais travestis e mulheres transexuais velhas. Ocorre que vivo no país que mais mata, orgulhosamente, as minhas. Das poucas sobreviventes que superam a expectativa, muitas vivem em isolamento social, fruto das violências transodiantes que as rasgaram durante toda a vida.
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O direito à velhice é mais um dos privilégios cisgêneros. Quantas pessoas trans e travestis velhas vocês conhecem? Travestis não envelhecem, são mortas. A sensação de que permanecemos e somos todas jovens pode ser explicada por que não nascemos, mas vivemos e morremos igual estrelas cadentes que iluminam uma sociedade odiosa como essa, em um curto espaço-tempo, com toda nossa beleza e genialidade, pese as violações em que padecemos.
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FÚRIA TRAVESTI
Há dias mais fáceis
A maioria são difíceis
Nenhum leve
Em que se possa ser frágil
Sempre forte
Resiliente
Transformar dor
Em amor
Transbordar vida
Mesmo em luta
De dia aos risos
De noite aos prantos
Com suas corpas
Insegura
Desprotegida
Pueril
Vil
Vinil
Ninguém à toca
Indesejada
Desalmada
Mal amada
Violentada
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Esfaqueada
(Pau)lada
Pedrada
Queimada
Esquartejada
Desfigurada
Não serve pra nada
Ainda que coletivamente estuprada
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Cabelo cortado
Peito tirado
Coração arrancado
Pênis dilacerado
Tem nome negado
Vivas
Ou mortas?
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Jornada
Camilla diz ser Camilla desde os 16 anos: “Escolhi esse nome ao ler telenovelas nas revistas”, conta. Graças a sua mãe, Maria Nair Rodrigues, já falecida, toda a família reconhece e respeita Camilla desde muito cedo: “Minha mãe foi uma mulher à frente de seu tempo, apesar de analfabeta”, comenta. Contudo, acontecia dos parentes distantes tratarem-na pelo nome de batismo, mas por não conviverem com ela, cometendo o que denominamos hoje de violência recreativa, em que a pessoa violadora sente prazer em nos agredir.
Ela cresceu na Fazenda Petrópolis, hoje um bairro nas franjas de Franca, uma transição entre o rural e o urbano, na residência de um casal de médicos onde sua mãe tornou-se cozinheira após longos anos trabalhando nas lavouras de café. Camilla conta que a mãe falava abertamente sobre suas atitudes e comportamentos para o casal, como o fato de que ela se vestia com as roupas da irmã desde pequena. E que o casal teria, então, “aberto a cabeça da mãe com todo o conhecimento que tinham”. Assim, Maria Nair passou a aceitar e lidar melhor com a ideia de ter uma filha trans, há tanto tempo.
Casa-se ainda menina, aos 17. Ou melhor, junta os trapos com Talles Valtenior, um homem com 47 anos na época. “Ele tinha idade para ser meu avô”, diz, em meio a risos. Camilla era considerada um homem perante ao Estado, e o matrimônio igualitário estava longe de ser uma pauta do movimento LGBTQIA+ brasileiro, que acabava de nascer e dar seus primeiros passos.
“Eu me apaixonei pela voz daquele homem chamando no portão da casa de uma das minhas irmãs”, florescendo uma história de amor incomum em tempos tão longínquos. Nos 12 anos em que estiveram juntos, Camilla viveu uma vida pacata de dona de casa moradora da zona rural. Ele era dono de uma padaria, o que lhes dava uma vida digna e confortável.
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Enquanto se conheciam, no começo do namoro, Talles sempre levava um chocolate quando visitava Camilla em sua casa, com o intuito de conquistá-la. Já casada, Camilla atuou em peças de teatro na cidade de Franca, ganhando um festival de monólogos com o texto “Apareceu a Margarida”, no Teatro Amador, em 1981. Não houve uma separação. Quando Camilla tinha 29 anos, Talles morreu de câncer. Foi viúva por pouco menos de uma década, quando se casou novamente.
“Eu me apaixonei pela voz daquele homem chamando no portão da casa de uma das minhas irmãs”
Camilla
Seu segundo casamento foi ainda mais duradouro, mas nem longe do mar de rosas do primeiro. Pelos próximos 18 anos esteve ao lado de João Pedro, um homem bipolar, ciumento e possessivo que a trancava em casa. Quando foi ameaçada de morte pelo marido, que não aceitava a separação, decidiu morar em São Paulo, realizar a cirurgia de redesignação sexual feminina e operar de hérnia.
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“Eu não ia muito à cidade, somente acompanhada do meu ex-marido ou da minha irmã”, explica Camilla sobre como era ser uma mulher transexual na zona rural. “Eu não sentia essa violência toda que existe nas cidades. O povo lá era hospitaleiro, receptivo”. Para ela, a maior violência que sofria era não ter feito a cirurgia de redesignação sexual. Era o que faltava para sua felicidade ser completa: “Era uma dor, uma tortura diária, não me ver, não me encontrar no meu próprio corpo”, ela diz sobre vestir-se e também ser vista nua pelo companheiro. Pergunto a Camilla se as pessoas sabiam ou comentavam sobre sua identidade de gênero: “Não sei se era eu que não percebia, mas acredito que meu comportamento fazia com que as pessoas não soubessem que eu era trans. Elas se referiam a mim como a mulher do João Pedro, aquela loira”.
A violência transodiante é interseccional, ou seja, não acerta a todas da mesma maneira e se entrecruza com outras violências estruturais. Apesar de não senti-la por possuir uma família e outros vínculos afetivos – um dos fatores mais fundamentais para diminuir as chances de mulheres trans serem vítimas de crimes contra suas vidas, que a protegia de ser um alvo –, Camilla desconhecia a possibilidade de acompanhamento para hormonioterapia e cirurgia de redesignação sexual feminina via processo transexualizador realizado pelo SUS, bem como os trâmites para retificação de nome e gênero na certidão de nascimento.
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No processo de separação e planejamento para sua vinda à capital, foi acolhida pela irmã em sua casa, que abrigava já há alguns anos uma outra mulher trans paulistana. Ela se ofereceu para acompanhar Camilla e ajudá-la a se instalar na cidade, alegando imaginar espanto com que ela poderia sofrer vivendo pela primeira vez na cidade grande. Numa ocasião, ambas estavam na rodoviária do Tietê: “Enquanto eu estava no banheiro, ela roubou toda a minha bagagem, todas as minhas economias, roupas, recordações”.
Incrédula que ela tivesse feito isso, após anos vivendo com sua irmã, e também desesperada, sem saber o que fazer e para onde ir, Camilla passou a viver no local durante uma semana, se alimentando de doações de passageiros. Um segurança lhe abordou e ofereceu ajuda, encaminhando-a a um abrigo. Começava ali sua luta em busca de autonomia, que remonta, na realidade, à sua infância.
“Eu não sentia essa violência toda que existe nas cidades. O povo lá era hospitaleiro, receptivo”
Camilla
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No CTA-8, na Lapa, um abrigo misto com quartos exclusivos para travestis e mulheres trans, uma mulher cisgênero, também moradora de lá, arranjou um bico de panfletagem para Camilla, uma oportunidade para recomeçar depois de tudo o que vinha acontecendo. Numa tarde panfletando, Camilla desmaia de dor nas costas por conta da hérnia. Levada ao hospital e operada, ela é transferida para a Casa Florescer I, um lugar com instalações mais adequadas para cuidar de sua recuperação.
Depois de realizar um curso de gastronomia pela Câmara Municipal de São Paulo, ela se desentende com outra moradora e decide retornar para o abrigo na Lapa, aproveitando a oportunidade para começar um novo curso de empreendedorismo no Sebrae. Foi por pouco tempo: “Arremessavam pratos de comida quente nos rostos das meninas. Elas apanhavam de pauladas e os seguranças não interferiam. Era um lugar de convivência bastante difícil”, diz Camilla.
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Possibilidades através do acolhimento
No momento em que estamos atravessando uma nova geografia da fome e da pobreza no Brasil, faz-se mais necessário do que nunca a manutenção das políticas públicas de assistência social, direitos humanos e cidadania. Desde que comecei a me aproximar das histórias de vida das meninas para publicar essa série de reportagens, ainda no mês de abril, ficou cada vez mais evidente a relevância dessas ações do poder público visando a garantia da vida.
Pois é sobre isso que venho abordando aqui quando falo de mulheres que passam pelos Centros de Acolhida Especial (CAE) para travestis e mulheres transexuais, as Casas Florescer I e II, e saúdo agora a recente abertura da Casa João Nery, destinada a homens trans e pessoas transmasculines. Quando retrato o que representa para elas a possibilidade de voltarem a estudar, se qualificarem e ter uma renda fixa, seja através do Programa Transcidadania ou do trabalho que desenvolvem junto ao Projeto das TRANSgressoras, aponto para iniciativas fundamentais nesse período transitório em busca por autonomia, falo na inviolabilidade do direito à vida perante ao que a rua representa para nós, um espaço em que ocorre mais da metade dos assassinatos de travestis e mulheres trans no Brasil.
“Nosso acolhimento busca ser integral, promover a escuta atenta, algo mais humanizado e menos mecânico: sentar, escutar, aconselhar a orelha, se for necessário”, comenta Edilene Ferreira, assistente social, pedagoga e coordenadora da Casa Florescer II, sobre o dia a dia do espaço e os serviços prestados as meninas. A casa oferece cinco refeições diárias (café da manhã, almoço, café da tarde, jantar e ceia), banho, toalha, roupa de cama e cobertor. Realiza doações de roupas e produtos de higiene pessoal, cursos e parcerias a partir de iniciativas individuais, ativistas e privadas. A permanência na Casa pela convivente depende de seu processo na busca por autonomia, realizado por meio de acompanhamento técnico com psicóloga e assistente social, não havendo um tempo determinado para saída.
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Quando cada menina quando ingressa na Casa, ela elabora seu Planejamento Individual de Atendimento (PIA), demonstrando interesse em estudar, sendo encaminhada para o Transcidadania; trabalhar, sendo levada ao Programa Operação Trabalho; ou realizar acompanhamento para dependência química, mandada a um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). “Essas meninas passam a viver um dia de cada vez. A luta pela sobrevivência não permite a elas sonharem com o dia de amanhã, elas vivem o hoje, o agora. O mais importante para elas é se manterem vivas e belas”, afirma Edilene.
A assistente social é consciente e lúcida da realidade vivida por jovens, que são a maioria na Casa Florescer. A maioria vem de situação de rua e prostituição em que permanecem, com índices de 80% em drogadição e 50% de população egressa do cárcere. “Cada texto tem seu contexto. Toda regra tem sua exceção. Eu tento sempre compreender a situação e devolver a bola para elas dizendo que cada uma delas é protagonista da própria história. Que são elas as únicas que podem fazer diferença em suas vidas”.
“Essas meninas passam a viver um dia de cada vez. A luta pela sobrevivência não permite a elas sonharem com o dia de amanhã,, elas vivem o hoje, o agora. O mais importante para elas é se manterem vivas e belas”
Edilene Ferreira, coordenadora da Casa Florescer II
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Trabalho e amor
Camilla esteve próxima das discussões para a abertura da Casa Florescer II, ajudando a dar luz aos casos de abusos e violências que as meninas sofriam em abrigos mistos, e também pela experiência na Florescer I. No dia da inauguração da Florescer II, ela corta a faixa e faz uma fala para as autoridades paulistanas, permanecendo por lá durante um ano. Hoje, ela segue buscando atuar na área de serviços gerais, apesar de ter registro em carteira como recepcionista em dois motéis localizados na saída da cidade de Franca, e de ter trabalhado como empregada doméstica, cozinheira e babá informalmente.
Não há possibilidade de uma pessoa trans conseguir um emprego se for discriminada na contratação, demitida por se assumir como trans, se não puder usar o banheiro de acordo com identidade de gênero, ou se for vista como um “abusador em potencial”. É interessante pensar que Camilla somente conseguiu trabalhos como empregada doméstica, cozinheira e babá, além da experiência de já ter feito um pouco de tudo na terra.
“Sinto como se não tivesse evoluído, pois meu segundo marido, o João Pedro, me proibia até mesmo de ter um celular para não conhecer outras pessoas”
Camilla
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Atualmente, Camilla vive em uma casa de um cômodo separado por um balcão estilo americano e um banheiro na parte externa, e divide o pequeno espaço com a preocupação de não ter emprego nem renda para se sustentar: “Estou me cadastrando em todas as vagas possíveis, mas tenho apenas meses para encontrar algo”, lamenta. Após esse período, ela não receberá um salário mínimo e doações de cestas básicas esporádicas através do Transcidadania, que encerrará suas atividades em janeiro de 2022.
Ela também voltou a estudar depois de 40 anos, concluindo o Ensino Médio e um curso de informática no último semestre. A coordenadora e um professor de uma das escolas onde Camilla estudou têm buscado uma bolsa para ela no curso superior de Assistência Social. “Tenho muita dificuldade em acompanhar as aulas e os encontros virtuais por não ter um educação e letramento digital, tecnológico. Sinto como se não tivesse evoluído, pois meu segundo marido, o João Pedro, me proibia até mesmo de ter um celular para não conhecer outras pessoas”.
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No início de setembro, no aniversário do Centro de Cidadania LGBT Luana Barbosa dos Reis, na Zona Norte paulistana, Camilla retornou aos palcos a pedido da coordenação e recitou um texto. A apresentação resultou em uma bolsa na Companhia de Teatro Os Satyros, mas ela não se adaptou ao curso virtual, e já se prepara para o curso de atuação da renomada SP Escola de Teatro – Centro Formação das Artes do Palco, a partir de janeiro.
Um dia desses, enquanto fazia sua ginástica diária na Praça dos Prazeres, conheceu o George, com quem mantém um affair. Semanalmente, Camila vai ao CRT da Vila Mariana insistir na realização de sua cirurgia de redesignação sexual feminina: “Eles vão me operar de raiva! É cada show que eu dou, mas educadamente”, ela conta, se divertindo. “Eu me emociono, minha saúde vem em primeiro lugar. Já tenho 62 anos, as meninas mais velhas deveriam ter prioridade. Não quero morrer sem me operar, e nem retornar para minha cidade do mesmo jeito que vim. É uma coisa difícil demais para mim, me ver, me encontrar, me tocar, são coisas que não acontecem, que eu não faço. A vergonha que eu tenho dessa parte…”, desabafa em um clamor carregado de angústia, desespero e sofrimento, que se repete em nossas prosas.
Em 2020, os números de atendimentos via processo transexualizador no SUS despencaram: as cirurgias caíram em 70% e a hormonioterapia em 6,5%, quando comparado a 2019, segundo dados do DataSus. Em números absolutos, em 2019, foram realizadas 133 cirurgias de mudança corporal e 3.910 acompanhamentos hormonais. Já em 2020, foram realizadas apenas 38 cirurgias e 3.653 tratamentos hormonais, uma média de uma cirurgia a cada nove dias.
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“Eu me emociono, minha saúde vem em primeiro lugar. Já tenho 62 anos, as meninas mais velhas deveriam ter prioridade. Não quero morrer sem me operar”
Camilla
Quando trago o direito à velhice, conjuntamente imploro por direito à memória, uma ancestralidade travesti – talvez uma transcestralidade, quando ainda é um privilégio da cisgeneridade nascer em um mundo dado à sua imagem e semelhança, quando nós, travestis e mulheres trans, não termos sequer o direito de nos vermos representadas em um livro didático, crescendo crentes de somos as únicas que não se encaixam nesse binário de gênero.
Casa Florescer I Rua Prates, 1101 – Bom Retiro (Centro), São Paulo – SP Telefone: (11) 3228-0502 E-mail: cadiversidade@gmail.com Facebook Instagram
Casa Florescer II Rua Capricho, 872 – Vila Nivi (Zona Norte), São Paulo – SP Telefone: (11) 2337-8459 E-mail: florescercroph@gmail.com Facebook Instagram