Cronistas do tempo
Fazer música não é tarefa fácil, principalmente para bandas que vão contra a corrente do que é viral e das trends das redes sociais. E a banda Tuyo, composta por Lio, Lay e Machado, está nessa jornada há mais de dez anos. Com uma mistura de pop, folk e eletrônico, o som trata dos temas mais íntimos do ser humano e acolhe quem o escuta.
“Para mim, observar os trajetos é muito importante. Sinto que o elemento mais latente da nossa obra é a vontade e o impulso que a gente tem de refletir a partir do tempo”, diz Lio. “Esse é um elemento bastante presente em tudo o que a gente escreve: está na escolha dos silêncios, do acúmulo de vozes, do empilhamento estético e emocional que a gente provoca.”
Na verdade, os três passaram a tocar juntos com a Sinomani, uma banda de voz e violão que cantava as descobertas da vida adulta. De lá para cá, muita coisa mudou: veio a maturidade dos integrantes e o aprendizado do mercado musical. “Na nossa categoria artística, o conhecimento está distribuído em muitos espaços. Não é algo que está catalogado. O que mais nos transformou foi conseguir aprender como as tecnologias nos atendem, o que a gente significa para o público e como o mercado se comporta”, afirma Lio. “Antes, a gente queria fazer música porque nos fazia bem, eu tinha vergonha de falar sobre sustento. Hoje, nós falamos mais sobre isso porque esse é, de fato, nosso trabalho.”
O esforço rendeu frutos. Em 2021, os curitibanos foram indicados ao Grammy Latino na categoria ‘Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa’. A partir daí, passaram a participar do line-up dos principais festivais do país. E 2023 será o ano de estreia nos palcos do Lollapalooza. “É irreversível que esses lugares sejam ocupados por gente nova. O volume de indicações de pessoas queer e pessoas pretas nesses espaços nos dá mais paz para a gente trabalhar”, reflete Lio.
Tuyo fechou o ano de 2022 de conquistas com o EP Depois da Festa, o primeiro lançamento que o grupo faz pela gravadora BMG Brasil. Ao todo, são quatro canções inspiradas naquele sentimento que temos antes de partir para uma nova jornada – um misto de expectativa, escolhas e reflexões. Abaixo, confira o papo completo com a banda:
A obra de vocês é muito artística: há uma preocupação com a estética com as roupas, álbuns e clipes. Como vocês amarram tudo para formar um trabalho coeso?
Lio: A principal movimentação para qualquer tipo de projeto cujo objetivo é soar uno é estar junto, que é algo que fazemos com muita frequência. Nós morávamos juntos na época em que começamos a tocar e, conforme a gente foi conseguindo conquistar mais autonomia socioeconômica, conseguimos o cantinho de cada um. Mas estamos sempre conversando sobre a vida. Em viagens, por exemplo, sempre optamos por experienciar a cidade juntos porque, no fim, nossas pesquisas têm muito das nossas trocas – o que resulta em um trabalho com elementos legítimos pros três.
O que inspira a Tuyo para além da música?
Lio: Para nós, observar os trajetos é muito importante. Sinto que o elemento mais latente da nossa obra seja a vontade e o impulso que a gente tem de refletir a partir do tempo. Esse é um elemento bastante presente em tudo o que a gente escreve: está na escolha dos silêncios, do acúmulo de vozes, do empilhamento estético e emocional que a gente provoca. Acho que observar pessoas reais deixa o discurso mais verdadeiro e faz com que a gente saia do mundo dos cânones e da elitização da linguagem.
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As letras de vocês são muito profundas e viscerais. Falam sobre amor, medo e afeto. Por que é tão importante tratar desses temas sem tabu?
Lio: É uma questão de sobrevivência. Eu não poderia falar sobre outra coisa porque todo indivíduo com algum tipo de marcador social está com um alvo nas costas a partir da desumanização. É o princípio que move o engajamento nas guerras – quanto mais você desumaniza uma pessoa, mais em paz você fica com o fato de ela ser assassinada. Isso acontece com pessoas negras, PCDs, mulheres, pessoas queer. Nosso papel enquanto artista é devolver para corpos como os nossos a possibilidade de ser lido como um ser humano completo e complexo. O que queremos é trabalhar a longevidade dos nossos iguais. E num momento em que boa parte da nossa vida acontece online, a desumanização sofreu um aceleramento. Discutir sentimento sem tabu tem a ver com permanecer vivo.
No ano passado, vocês foram indicados ao Grammy Latino e, nas redes sociais, falaram sobre o significado de uma banda com três pessoas negras ocupar esse espaço. De que forma isso afeta a produção de vocês?
Machado: Houve um dia em que só foi problema porque um prêmio como esse dá uma levantada na régua. É um problema bom, de sempre querer superar sua própria trajetória. Mas entendemos que houve uma caminhada e um plano para esse marco que conseguimos alcançar. Esse evento aconteceu no auge da pandemia e eu, particularmente, sentia no corpo que não podia parar, estava num movimento muito forte de ter que ser produtivo. Mas a gente entendeu que conseguiu fazer uma obra boa que foi indicada e reconhecida. Acho que deu a possibilidade da gente continuar seguindo nosso sonho, é como se a gente estivesse gritando pro mundo e ele respondesse: “Te ouvi! A mensagem que você está mandando faz sentido”.
Lio: E a gente não estava sendo escutado sozinho. No ano que nós fomos, a Luedji Luna também estava lá. Nesse momento, acabei de trocar uma ideia com a Mahmundi, que está em Las Vegas junto com a Tássia Reis. É irreversível que esses lugares sejam ocupados por novas pessoas. O volume de indicações de pessoas queer e pessoas pretas nesses espaços nos dá mais paz para trabalhar. A gente não mira em atender os critérios de um júri, mas quando, de alguma forma, eles são atendidos, a gente sente também escutado por essa categoria.
Estamos vivendo um boom de festivais nacionais e todos têm o line up muito similar. Ao mesmo tempo, temos uma efervescência enorme de artistas no Brasil. Como vocês percebem esse fenômeno?
Lio: Eu estou desesperada para os curadores recuperarem logo o dinheiro que eles perderam porque essa é a justificativa que se apresenta – e entendemos, já que o ecossistema de um show não se apóia só no artista. Mas nós também sentimos falta de novos nomes. Acho que essa responsabilidade também está no comportamento do público: com quem ele se relaciona e até que ponto ele está disposto a ouvir o que é novo e diferente. É uma discussão que está em todos os grupos! Pensar como a gente sobrevive sem deitar para o TikTok e para o que é viral. Acho que a gente foca em falar mais sobre quem deve ter os holofotes também. É por isso que chamamos outros artistas para participar dos clipes, dos shows e de projetos. A nossa presença nos festivais nos dá esperança porque não passamos pelo lugar do viral e da blogueiragem, não vivemos nenhuma grande trend.
Lay: Todos os aplicativos que envolvem música têm um dedo no que tem acontecido. As coisas estão mudando e a gente precisa olhar com cuidado. Há muitos artistas que surgiram com as redes sociais que nunca fizeram e formaram shows, mas estão sendo contratados. O público deles foi construído de outra forma, será que eles vão participar e engajar no ao vivo? É um momento de muita atenção para todos.
Uma das músicas mais emblemáticas da banda é “Soledad”. Como vocês compuseram e renovaram a sonoridade da faixa? E qual é a importância de falar abertamente sobre a solidão?
Lay: Todo mundo que tem consciência do que é o ontem e o amanhã tem muito medo da solidão. Essa é uma música que fala sobre território. Foi a primeira vez que eu saí de casa, que eu tentei alguma coisa e fracassei. É importante falar sobre isso porque precisamos entender até onde nossos medos vão, e como muitos deles vão nos acompanhar. De que forma andamos com a solidão? Como ela aparece nos nossos dias e fazemos com que ela nos mova e não nos trave? São 10 anos com essa música. Foi muito bom poder dar uma cara nova para ela. Trazê-la de volta é ressignificar memórias que eram desgostosas no começo mas que, agora, com a maturidade, se tornam mais agradáveis.