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Golpe para uns, guerra santa para outros

Para a Elástica, sociólogo explica como os evangélicos foram levados a acreditar que Bolsonaro é, de fato, um messias dos novos tempos
por Rafael Rodrigues da Costa Atualizado em 28 fev 2023, 19h07 - Publicado em
18.01.2023
10h00
Brasília pós golpe
intervenção sobre foto de Gustavo Leighton/Unsplash
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A pesquisa da Atlas/Intel divulgada no dia 10 de janeiro analisa os ataques às instituições federais e revela o abismo entre a percepção de evangélicos e a opinião pública em geral. Para mais de dois terços do primeiro grupo, Lula não ganhou a eleição presidencial do ano passado e uma intervenção militar deveria invalidar o resultado. Mas o que justifica a adesão dessas pessoas à narrativa golpista?

Em números: 68% dos evangélicos não acreditam que Lula obteve mais votos que o ex-presidente Jair Bolsonaro, dado diametralmente oposto aos entrevistados de outra religião em que 56% reconhecem Lula como vencedor.

Talvez por esse motivo, essa seja a fatia religiosa mais simpática à proposta de intervenção militar para invalidar o resultado das urnas – 64,3% dos evangélicos afirmam ser favoráveis ao golpe, enquanto, na opinião geral, mais da metade dos entrevistados (54%) rejeitam a ideia.

Não por acaso, os evangélicos são o grupo que mais aprovou a ação de manifestantes bolsonaristas que invadiram a sede dos Três Poderes em Brasília. Pouco mais de 31% aprovam as invasões, cifra 17% maior que a encontrada entre católicos (14%) e quase duas vezes acima da média geral (18%). A maior parte dos entrevistados – 76%, desaprova os atos.

Os números acompanham os fatos. Um dos mais icônicos, sem dúvida, foi a entoação de um hino da Harpa Cristã durante a invasão no Senado Federal, no qual as palavras de ordem “Os guerreiros se preparam para a grande luta / É Jesus o capitão, que avante os levará” revelam o inegável vínculo religioso que anima essas manifestações.

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Para entender o engajamento desse público ao golpe, é preciso saber que, para boa parte dos crentes isso trata-se, na verdade, da materialização de uma “guerra espiritual” entre o bem e mal, uma releitura do conflito apocalíptico entre Deus e o diabo, agora em termos políticos.

Essa leitura apocalíptica da realidade, no entanto, não é nova e nem originalmente brasileira. Durante décadas, movimentos conservadores norte-americanos estiveram próximos dos evangélicos brasileiros, ensinando tanto as maravilhas do Evangelho como a se preocupar com temas importados: a ascensão do comunismo; a luta contra ampliação dos direitos aos homossexuais; contra a descriminalização das drogas e do aborto; a favor da militarização da sociedade em nome da “ordem”, dentre outros. Dessa forma, o apoio gradual a pautas conservadoras passou a significar automaticamente a participação direta nos assuntos de Deus.

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Nos últimos anos, esse conservadorismo evangélico passou a ser cotejado por aquilo que alguns pesquisadores têm chamado de “Teologia do Domínio”: uma interpretação teológica que entende que o destino da Igreja é “governar sobre a terra”. Assim, todo crente teria como missão ampliar a influência do cristianismo em todas as esferas da sociedade, fazendo-o prevalecer contra o “império das trevas”. Ou seja, tudo aquilo que parecer mundano e não-cristão deve ser visto como inimigo e precisa ser conquistado.

Tudo deve ser cristianizado: seja a arte, a escola ou a política. Exemplo disso é a proliferação de movimentos de evangelização dentro de colégios e universidades Brasil afora, no qual a atividade religiosa caminha lado a lado com pautas anti-esquerda, como a Escola Sem Partido, e contra a suposta “doutrinação marxista” na academia.

A grande novidade do bolsonarismo, talvez, foi canalizar essa visão de mundo evangélica, tradicionalmente dispersa e fraturada por denominações, em um projeto político único, encabeçado por um líder – Jair Messias Bolsonaro – e contra um inimigo comum: a “esquerda”, aqui entendida como a síntese diabólica na política.

A história pegou. E, assim, os evangélicos ultraconservadores não só passaram a dominar o campo protestante, como também assumem, a partir de 2018, um senso de coesão e unidade inéditos em apoio à pessoa e ao projeto simbolizado por Jair Bolsonaro, o homem que “Deus livrou da morte” para “salvar o Brasil”.

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Com todas essas evidências, não surpreende o recente apoio dos evangélicos ao golpismo. Boa parte deles foi atravessada por uma rede de informações que, misturadas por intensos laços comunitários e afetivos, produzem uma verdadeira realidade paralela. Nela, cristãos estão neste momento lutando (física e espiritualmente) contra o mal encarnado em Lula, um “político das trevas”, corrupto, que usurpou o sistema político a fim de reintroduzir no Estado Brasileiro o projeto diabólico da esquerda de destruição da família, da Igreja e, por fim, de toda a civilização judaico-cristã.

Rejeitar a eleição de Lula seria, para os radicais evangélicos, menos uma tentativa de golpe de Estado e mais uma oportunidade para marcar posição diante de uma guerra espiritual: uma batalha onde principados e potestades disputam as almas rumo ao Juízo Final, onde as trevas tentarão seu último e mais astuto golpe, mas serão esmagadas pela Igreja de Cristo e seus santos para todos sempre. Esta é, aliás, a utopia do fundamentalismo religioso: um governo em que não haja divergência, nem oposição, pois todos estarão debaixo da vontade de Deus.

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(carnaval/Redação)

Não é trivial, portanto, o fascínio que o bolsonarismo desperta em alguns evangélicos. Eles estão debaixo de uma guerra cultural, onde respeitar o sistema eleitoral significa ser conivente com o avanço do inimigo, o mal que os crentes têm por missão profética extirpar. É aqui que os elementos religiosos, místicos e políticos se confundem, se misturam e viram uma coisa só. Uma realidade paralela que, embora pareça bizarra e inverossímil para quem está de fora, é tremendamente real para todos aqueles que vivem debaixo dela.

O desafio de nosso tempo, portanto, consistirá em encontrar caminhos para que valores democráticos tenham espaço em um campo tão influenciado pelo radicalismo religioso e pela manipulação ideológica. A desbolsonarização da sociedade brasileira precisará passar pelos evangélicos.

*Rafael é sociólogo, mestre em Ciências Sociais pela Unifesp e pesquisador visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Psicologia Social na Faculdade FECAF. 

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