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Confinada

As tiras que surgiram nas redes sociais viraram um livro que retrata a sociedade de hoje e seus problemas, como desigualdade, racismo e xenofobia

por Beatriz Lourenço Atualizado em 30 nov 2021, 11h13 - Publicado em 30 nov 2021 00h24
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(Clube Lambada/Ilustração)

e você ainda não entendeu como acontece o conflito de classes, Triscila Oliveira e Leandro Assis desenharam para simplificar. As tiras da dupla, que fizeram sucesso nas redes sociais, agora foram compiladas e viraram um livro que leva o nome da série: Confinada. Publicada pela editora Todavia, a obra trata de diversas questões que rondam a nossa sociedade, como racismo, desigualdade social e até os males do capitalismo.

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A história começa com o início da pandemia e a necessidade de distanciamento social. É aí que Fran, uma influenciadora digital, fica isolada em seu apartamento com Ju, trabalhadora doméstica. Isso faz com que o mundo de duas mulheres diferentes se choquem. Enquanto a primeira é branca, rica e cresceu com privilégios, a segunda é uma mulher negra e periférica que começou a trabalhar desde cedo para sustentar sua família.

“Confinada é o spin off de Os Santos, uma série que eu e a Triscila estávamos fazendo para abordar a desigualdade social e o racismo partindo da relação de patrões e suas trabalhadoras domésticas”, explica Leandro. “Eram duas famílias: uma de brancos ricos da Zona Sul do Rio de Janeiro, Os Santos, e outra de mulheres pretas que trabalhavam para essas pessoas. A Fran e a Ju derivam dessas famílias.”

“Vimos que não existe influencers de positividade em meio ao caos, mas pessoas que preferem ignorar a realidade. Ficar pregando, em meio a uma pandemia, que vamos sair diferentes e refletir sobre esse momento é horrível”

Triscila Oliveira, autora
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(Triscila Oliveira/Divulgação)

As temáticas abordadas apareceram conforme o comportamento do brasileiro durante esse período. Há discussões sobre o luxo, dancinhas de Tik Tok, o discurso antivacina e até o surgimento de novas marcas que usaram do vírus para ganhar dinheiro. “A ideia de partir para uma influenciadora digital tinha a ver com o Instagram, que era a própria ferramenta de divulgação que estávamos usando, mas também era uma profissão boa para falar sobre a futilidade que se aflorou nesse meio tempo”, conta Leandro.

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É possível dizer que essa foi uma narrativa escrita com muita dor e vontade de escancarar um país com problemas estruturais. “Quando a Ju, no auge da revolta dela, pega o telefone e começa a gravar seu discurso, era tudo eu falando. Meu gênero é errado, meu cabelo é errado, minha pele é errada. Para a sociedade, o negro não deveria existir”, diz Triscila. “Não existe nada feito exclusivamente para a gente e, quando acontece, surge o fantasma do racismo reverso. Portanto, não é possível abordar nenhuma pauta como feminismo, racismo e gordofobia, sem colocar sua própria raiva e coração.” Para fazer uma análise sobre esse momento histórico e sobre as protagonistas do HQ, conversamos com os dois criadores de Confinada.

A narrativa aborda um pouco de tudo o que aconteceu durante a pandemia: delivery, influencers, o governo Bolsonaro, as dancinhas do TikTok… Como vocês escolheram os temas que iam entrar?
Leandro Assis: Era o que ia acontecendo no Brasil. O que a gente via que era marcante e achava que ia encaixar na nossa história. Também era muito comum os próprios leitores e seguidores mandarem sugestões do que poderíamos abordar.

Triscila Oliveira: Nós trouxemos assuntos que nos angustiavam. Vimos que não existe influencer de positividade em meio ao caos, mas pessoas que preferem ignorar a realidade. Ficar pregando, em meio a uma pandemia, que vamos sair diferentes e refletir sobre esse momento é horrível. A gente não tem que refletir, temos que botar a boca no trombone contra um governo que não compra vacina para a população. O que eu percebi com tudo isso é que somos seres humanos sem humanidade.

Esse é um comportamento que chocou?
Triscila Oliveira:
A mim não chocou porque a realidade que eu vivo em si já me entorpece. Eu passei por muitas coisas nessa vida e aprendi a lidar com isso até para não adoecer. Então, ver a elite e a burguesia cagando para a própria vida e para a vida de todos para continuar usufruindo de privilégio e de seus luxos é algo comum.

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Vocês reportam o caso de diversas marcas usando a pandemia para fazer mais dinheiro. Como vocês analisam isso? Era a hora da gente consumir do pequeno produtor?
Leandro Assis:
A impressão que eu tenho é que esse é o retrato do capitalismo. Tem uma hora que as empresas precisaram se virar para sobreviver já que estava todo mundo passando por necessidades. Bem ou mal, precisávamos de máscaras e de certos produtos e serviços que não eram tão fundamentais antes. O que fica complicado de lidar é quando vem a questão do luxo em cima de tudo isso. Quando os preços ficam exorbitantes, você encontra a hipocrisia e a futilidade tão comuns nesse abuso do poder econômico. É mórbido passar por uma pandemia e ter gente tentando lucrar com a mesma ganância de antes. Por um lado, os menos favorecidos foram obrigados a trabalhar e não tiveram apoio do governo. Por outro, os mais privilegiados exploraram essas pessoas e as colocaram em risco.

Triscila Oliveira: Mas isso não é só por causa da pandemia, precisamos lembrar que estamos passando por uma crise econômica profunda que é resultado do nosso governo. Sempre é a hora de consumir do pequeno produtor e comprar o produto de quem faz em casa, de quem faz coisas de forma artesanal.

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(Todavia/Divulgação)

Tem um quadrinho muito marcante que é quando a Ju vai fotografar e pensam que ela roubou a câmera de outra família. Isso acontece todos os dias com pessoas pretas e vocês resolveram incluir isso na história.
Leandro Assis:
O projeto é, para mim, uma espécie de estudo sobre a branquitude. É ver como o branco se comporta, fala, age e normaliza um monte de coisa que não é natural. Quando a Triscila entrou no trabalho isso ficou mais importante do ponto de vista dela, de quem sofre o racismo. Essa tira foi inspirada em um caso real de um fotógrafo preto que estava em uma área residencial tirando fotos e logo apareceram pessoas para enxotar ele de lá. Casos como esse acontecem todos os dias no Brasil e sentimos a necessidade de expor isso.

Triscila Oliveira: Historicamente o lugar da pessoa preta é na pobreza. Quando aconteceu a abolição, que foi por pura pressão, as pessoas escravizadas eram livres mas não tinham como sobreviver. Não houve, em nenhum momento, qualquer medida de inclusão ou de reparação para essas pessoas. Por isso, o preto e pobre no Brasil é quase um sinônimo. Quando uma pessoa preta se movimenta desse local histórico de vulnerabilidade, ninguém acredita. Ela choca. Uma mulher preta como a Ju com uma máquina fotográfica na mão, automaticamente pensam que foi roubada.

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“Tem uma hora que as empresas precisaram se virar para sobreviver já que estava todo mundo passando por necessidades. Bem ou mal, precisávamos de máscaras e de certos produtos e serviços que não eram tão fundamentais antes. O que fica complicado de lidar é quando vem a questão do luxo em cima de tudo isso. Quando os preços ficam exorbitantes, você encontra a hipocrisia e a futilidade tão comuns nesse abuso do poder econômico”

Leandro Assis, autor
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(Leando Assis/Divulgação)

Há alguns momentos de pequenos prazeres das pessoas que trabalham para a Fran. Por exemplo, quando Ju ordena que ela fique no quarto e acaba usufruindo de um dia no apartamento e quando o porteiro risca o carro dos convidados que o humilharam.
Leandro Assis: Quando pensamos em Confinada, essa foi a primeira tira que idealizamos. Ela é inspirada no filme Que horas ela volta, que tem o momento em que a personagem da Regina Casé entra na piscina. É um pouco catártico ver essas pessoas agirem diante daquilo que está acontecendo. Elas estão sendo oprimidas, invisibilizadas e exploradas. Até que ponto alguém aguenta que pisem em cima sem reagir? É isso que a desigualdade no Brasil faz diariamente: desumaniza essas pessoas e as coloca para viver em péssimas condições. Por outro lado, se alguém se rebelar ou se revoltar, a polícia já está com a arma apontada. Queríamos mostrar com essa tirinha que é difícil aguentar tudo isso.

​​Triscila Oliveira: É ridículo que pessoas do Nordeste ou que tem um sotaque marcado sofram esse tipo de xenofobia no Sudeste como se essa região fosse o Brasil e o resto fosse agregado. Esses momentos foram um refresco para muita gente. Quando a Ju toma o sorvete, liga a televisão e pula na piscina, ela está acessando coisas que nunca conseguiu. É algo que ela vê e serve todos os dias, mas mesmo assim é inalcançável. A tira serve para repensarmos um novo modelo de sociedade onde todas as pessoas tenham a chance de ter o básico e acessar prazeres que elas queiram.

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(Todavia/Divulgação)

Quando é a hora de se rebelar?
Leandro Assis: Sempre é! Inclusive, no momento em que vivemos já passou da hora. Não tem outro jeito. Mas no final das contas sempre parece que as classes mais excluídas vão continuar sendo excluídas das grandes decisões e tudo é um acordo entre os privilegiados e donos do poder. Foi assim na proclamação da República, na independência, na abolição, na ditadura e no governo Jair Bolsonaro. Em todo caso, esse seria um bom momento para ter uma reação maior.

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Em outra tirinha, a Fran se lembra de um momento de afeto com uma empregada que trabalhava em sua casa quando ela era criança. Será que ela, se não fosse criada por aquela família e tomada pelo dinheiro, teria crescido diferente?
Leandro Assis: Essa é uma pergunta que eu também me faço. Eu acho que o racismo é aprendido pelas pessoas com os exemplos de quem as rodeia. São pais, parentes, amigos… Não é algo natural, é uma construção. Se ela tivesse crescido em outro ambiente, acredito que ela seria outra pessoa para tudo.

Triscila Oliveira: Existe um ditado africano que diz que é preciso uma vila para criar uma criança. Se pararmos para analisar isso, vemos que os ciclos sociais que frequentamos construíram o que somos hoje. Quando uma pessoa vive dentro de uma bolha, dificilmente ela consegue enxergar a realidade. Talvez ela tivesse sido uma pessoa mais empática e humana se não fosse sua família, mas foi uma grande interrogação que deixamos na série. Todos nós somos resultado do nosso meio.

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(Todavia/Divulgação)

Em uma final do BBB na vida real, quem ganharia?
Leandro Assis:
Eu não tinha pensado nisso até você perguntar. Eu vi o BBB nas primeiras edições e há muito tempo não assisto. Mas a minha impressão é: se a Fran mostrar um pouco do que ela mostrou para os leitores, as pessoas não vão gostar dela. Ela vai ser vista como uma vilã de novela que é a forma como ela é vista na série. Então, eu acredito que ela seria chutada logo de cara.

Triscila Oliveira: Eu acredito que a Fran ganharia. Aposto que a Ju passaria o programa todo ajudando, ouvindo e cozinhando para os outros e, no fim, seria chamada de planta.

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“Existe um ditado africano que diz que é preciso uma vila para criar uma criança. Se pararmos para analisar isso, vemos que os ciclos sociais que frequentamos construíram o que somos hoje. Quando uma pessoa vive dentro de uma bolha, dificilmente ela consegue enxergar a realidade”

Triscila Oliveira, autora
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(Todavia/Divulgação)

Vocês acreditam que o livro é um retrato da sociedade contemporânea?
Leandro Assis: Fizemos o livro para falar sobre o que vivemos hoje. Somos uma sociedade intolerante e que piorou muito de uns anos pra cá com essa onda da extrema direita. É muito triste ver essas pessoas se sentindo no direito de serem racistas, preconceituosas, homofóbicas… Isso sem contar a desigualdade social que sempre foi naturalizada por muita gente. Estamos em um mau momento e ele precisa ser analisado.

Triscila Oliveira: Acredito que o livro pode ser uma espécie de documento histórico que vai mostrar para as próximas gerações tudo o que passamos durante esse momento da pandemia. Se, no futuro, pessoas pesquisarem os livros publicados durante a pandemia, irá aparecer o Confinada.

Essa é uma HQ, que tem um formato lúdico, mas traz um assunto mais sério. Como vocês percebem isso?
Leandro Assis:
Para mim, os quadrinhos servem para contar qualquer tipo de história. Eu sou público de quadrinho assim como sou de cinema, de teatro e de literatura. Não teve muito essa questão se era possível ou não falar sobre determinado tema por ser uma HQ. Mas sem dúvida no quadrinho é possível fazer o leitor baixar um pouco a guarda porque ele está acompanhando entretenimento e está se divertindo.

Triscila Oliveira: Eu acredito que é justamente pelo formato que chocou tanta gente que leu.

Vocês incluíram tirinhas com algumas personalidades reais, como Karol Conká, Winnie Bueno, Bielo Pereira e Preto Zezé. Como foi isso?
Leandro Assis: Eu acho que teve um momento durante o processo do livro que veio à tona essa questão da representatividade. Uma coisa que pensamos é que as pessoas precisam entender que elas mesmas têm o poder de diversificar suas redes sociais analisando quem elas vão seguir. Ao invés de seguir só as Frans, têm muitas outras pessoas que falam coisas interessantes e podem tornar a rede mais diversa.

Triscila Oliveira: Essa tirinha foi feita para celebrar o dia 20 de novembro do ano passado. Nós pensamos em homenagear pessoas que estão todos os dias dando a cara a tapa na linha de frente. A gente precisa olhar mais para elas e perceber o quanto estão produzindo um conteúdo que nos faz repensar o nosso papel na sociedade.

Vocês tratam muito de política. São as falas reproduzidas de Bolsonaro, a personagem que é Lulista e até a forma de agir de todos eles.
Triscila Oliveira:
Tudo é política, querendo você ou não. Saúde pública, acesso a emprego, moradia e lazer são política. É urgente que as pessoas entendam que falar de política não é falar sobre presidente, mas sobre todas as coisas que atingem o nosso cotidiano e vivência. Se um governo escolhe qual parte da cidade vai ter saneamento básico, é uma questão política. A gente precisa debater a política como ela é e não como fizeram a maioria pensar que ela é.

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