Festivais de arte urbana colorem edifícios pelo Brasil
Ao pintarem empenas pela cidade, artistas criam grandes portais para a reflexão, esperança e luta
por Beatriz LourençoAtualizado em 8 nov 2021, 14h35 - Publicado em
8 nov 2021
00h35
ma pesquisa feita em 2020 por dois psicólogos da Universidade da Basileia, na Suíça, revelou que olhar para obras de arte é o suficiente para nos causar emoções. Elas não precisam estar acompanhadas de uma legenda que explique seu sentido e você nem precisa gostar, de fato, do que vê. Tudo se resume em olhar e sentir.
A arte também tem o papel de despertar a criatividade e transformar o nosso dia a dia. Desde o começo da pandemia de Covid-19, quando todos os museus e galerias foram fechados para visitação, essa responsabilidade ficou para as pinturas de rua. Ainda que muitas vezes políticos, os graffitis, os murais e os pixos ocuparam o papel de tirar os pedestres da dura realidade de crises e inspirá-los a refletir sobre o mundo.
Neste ano, dois eventos se destacaram na organização da coloração de empenas de prédios – paredes laterais de um edifício sem aberturas (janelas ou portas), geralmente preparadas para receber outra construção encostada. Ali, artistas novos e consagrados de todos os cantos do Brasil e do mundo podem criar desenhos gigantes que se destacam em meio ao cinza das metrópoles.
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NaLata Festival
A segunda edição do evento, que começou em setembro, está rolando no Largo da Batata, Faria Lima e no bairro de Pinheiros. Até agora, artistas produziram murais e painéis exclusivos, resultando em mais de 2 mil metros quadrados dearte urbana espalhada por São Paulo.Luan Cardoso, curador e idealizador do NaLata junto com a Agência Inhaus, conta que a ideia nasceu da vontade de criar um festival de arte pública e reunir grandes nomes da modalidade. “O graffiti é uma das grandes expressões artísticas da cidade assim como a pixação. É inevitável não ser impactado por ele – e isso vale para qualquer pessoa que passa por essas obras de carro, a pé, de moto, ou de ônibus”, diz.
A participação de Shepard Fairey, um dos mais influentes grafiteiros do mundo – também conhecido por sua marca Obey – foi um dos atrativos deste ano. Isso porque essa foi sua primeira vez no Brasil e a obra, que pode ser vista no Largo da Batata, ocupa duas paredes de oito andares e 25 metros de largura. Em um post do Instagram, Fairey conta que o mural é sobre como cultivar a justiça, enfatizando a necessidade de justiça ambiental para manter nosso planeta saudável. “A difusão e a qualidade das obras no bairro onde pintei foram incrivelmente inspiradores e estou grato por adicionar minha voz à mistura”, escreveu. Orgulhoso, Luan afirma que foi emocionante trazê-lo: “É um prazer muito grande, mas sempre gostamos de frisar que uma pessoa sozinha não faz um festival. Os outros artistas são tão importantes quanto ele”.
Entre os nomes brasileiros e com uma linguagem visual única, Finok se inspira nas “salas dos milagres” para criar sua empena. Esses são lugares que reúnem provas de fé chamadas ex-votos, ou seja, objetos (geralmente de madeira e representando partes do corpo) doados após a realização de uma promessa ou milagre. “A minha pintura é um ex-voto, já que é uma cabeça de agradecimento à cidade de São Paulo por tudo que ela já me proporcionou em relação à arte”, explica. “Eu acho muito importante esse tipo de trabalho porque eles fazem com que as pessoas percebam um pouco mais sobre sua relação com a cidade, além de propor diversas discussões – tanto sobre arte urbana quanto sobre arquitetura“.
“Acho esse tipo de trabalho muito importante porque eles fazem com que as pessoas percebam um pouco mais sobre sua relação com a cidade, além de propor diversas discussões – tanto sobre arte urbana quanto sobre arquitetura”
Finok
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O artista, que tem projetos em países como Itália, Londres e Portugal, acredita que suas obras transmitem um conjunto de ideias que fazem sentido para o lugar onde está pintando. Segundo ele, o que importa não é o gostar ou desgostar do público, mas a percepção de que algo mudou no meio do caminho. “Eu faço as coisas mais para as pessoas que frequentam aquele determinado lugar. A minha preocupação não é agradar, mas mostrar uma mudança na cidade para quem está acostumado a passar por ali”, completa.
Nesta edição, Kika Carvalho cria a primeira empena de sua carreira. Ela é conhecida por ser a primeira mulher de destaque a pintar os muros de Vitória, no Espírito Santo, e uma das responsáveis pela construção da cena local. O mural da artista evidencia a imagem de uma jovem negra em uma postura cotidiana, apenas sentada em uma cadeira. “Ela não está dentro desse contexto que nós negros somos colocados geralmente pela mídia, que consiste na violência, no cárcere e diversas esferas negativas”, diz Kika. “O azul tem a ver com o fato dessa cor ter, dentro da história ocidental, o papel de status de poder. Além disso, na história da arte, as pessoas negras não são representadas, já que quem tinha o foco eram pessoas da elite. Isso muda um pouco com a fotografia mas, mesmo assim, os filmes são feitos para registrar a pele branca. Eu quis trazer todo esse contexto em um trabalho só.”
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Para ela, falar sobre pautas raciais é essencial – principalmente em um país onde ainda existe tanto preconceito. Ainda que seja crime, a discriminação pauta desde discursos de pessoas comuns até ações policiais. “A pauta racial dificilmente vai ser superada no Brasil sendo que ele firmou toda sua classe média e classe média alta a partir do colonialismo e da mão de obra de pessoas escravizadas”, reflete.
“Na história da arte, as pessoas negras não são representadas, já que quem tinha o foco eram pessoas da elite. Isso muda um pouco com a fotografia mas, mesmo assim, os filmes são feitos para registrar a pele branca. Quis trazer todo esse contexto em um trabalho só”
Kika Carvalho
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Kika conta, também, que sua arte passou a ser mais valorizada durante a pandemia. Isso porque as conexões passaram para o meio digital. “Tudo ficou online e esse movimento permitiu que muita gente que não estava sendo vista passasse a ter importância. Nesses últimos anos, meu trabalho passou a ir para diversos lugares, como a Pinacoteca de São Paulo, por exemplo.”
Espalhar arte pela cidade é um respiro necessário em tempos difíceis, mas não podemos esquecer que a iniciativa é o primeiro degrau de uma longa escada a percorrer. Afinal, os murais estão localizados em locais centrais e bairros nobres. Enquanto isso, bairros periféricos que precisariam ter mais investimento e visibilidade ainda ficam sem tinta.
“Escolhemos a região de Pinheiros para o NaLata pois é um espaço de grande circulação, por onde passam moradores de diversas regiões da cidade, de todas as classes sociais, por conta do perfil de múltiplos usos do bairro. Ainda assim, estamos sempre buscando novos espaços na cidade com estrutura urbana que comporte um festival nesses moldes. Então existe a possibilidade de que em próximas edições do Festival, ele também abarque outras regiões”, afirma Luan, o curador.
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Festival Cura
O Cura – Circuito Urbano de Arte é um festival de arte urbana que acontece em Belo Horizonte. Segundo a curadora Janaina Macruz, a ideia nasceu da vontade de colocar Minas Gerais no mapa mundial da arte urbana. “No começo, queríamos trazer pessoas de fora para cá e juntar com artistas locais para que eles ganhassem mais visibilidade”, afirma.
As primeiras pinturas da edição deste ano já podem ser vistas no Centro da cidade. Sua primeira intervenção foi a restauração da obra “O Abraço”, do artista Davi De Melo Santos, também conhecido como DMS. O mural, muito querido pelos moradores, foi desgastado com o tempo e se tornou ainda mais simbólico durante a pandemia. “Estamos repintando ele com essa esperança de tempos melhores e dos abraços que estão por vir”, diz Macruz.
A 6ª edição do Cura também chega inspirada na cultura indígena e a relação com a história da cidade. Os artistas Shipibo Sadith Silvano e Ronin Koshi, da Amazônia Peruana, desenvolvem uma obra nas faixas da Praça Raul Soares. O local é um dos principais símbolos de Belo Horizonte, já que guarda a cultura dos povos originários do Rio Amazonas.
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O Coletivo Mahku também é um dos grupos importantes que participam em 2021. Ele reúne pesquisadores-artistas indígenas da etnia Huni Kuin, do Alto Rio Jordão. Criado em 2013, o movimento passou a registrar e publicar os saberes musicais e rituais do seu povo que corriam o risco de desaparecer na sociedade seringalista. “Originários do Acre, eles trabalham a cura pintando a partir de cantos xamânicos que traduzem saberes, rituais e tradições do que se conhece como ‘espírito da floresta’”, conta Priscila Amoni, uma das idealizadoras.
“Precisamos entender que todo lugar que tem gente tem arte e tem cultura. Então, precisamos fazer com que as coisas que são produzidas aqui cheguem também em outros lugares”
Janaina Macruz
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Já EdMun é o artista anfitrião. Consagrado pela maestria na técnica dos graffitis realistas, é no Cura que realizará sua primeira empena. Sua pintura criará a impressão de que ela vem de dentro do prédio e será uma obra em homenagem à escrita e à comunicação por símbolos e grafismos, tudo inspirado na arte marajoara.
Prestigiar o evento significa expandir o conhecimento para fora do eixo Rio-São Paulo e olhar para as diversidades culturais do país. “Precisamos entender que todo lugar que tem gente tem arte e tem cultura. Então, precisamos fazer com que as coisas que são produzidas aqui cheguem também em outros lugares. Isso é importante demais porque o Brasil é enorme! São vários estados e várias cidades, porém tudo ainda fica muito centrado nesses centros urbanos”, comenta Janaina.
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