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Hal Wildson: Letras da Memória
Quando passado e presente se confrontam para fincar o pé na história
Um encontro entre Brasis, daquele que parece ter ficado no passado, daquele que se sente no futuro. Entre os dois, uma infinidade de histórias a serem contadas. O trabalho de Hal Wildson nos transporta para os muitos países que cabem dentro destas linhas traçadas por acordos históricos. Uma voz que ecoa do meio para a borda e faz sentir a presença do esquecimento.
Entre máquinas de escrever, fotografias, colagens e tecidos, o artista procura desvendar sua própria história enquanto enfrenta o apagamento geral da memória brasileira. Se por um lado a técnica impressiona, por outro as obras convocam os acontecimentos históricos para um campo de batalha que se desenrola num mergulho profundo no não-contado.
Hal Wildson nasceu no Vale do Araguaia, uma região do sertão do Brasil, na divisa de Goiás e Mato Grosso. Hoje com 32 anos e vivendo entre sua casa em São Paulo e a galeria no Rio de Janeiro, o artista traz suas origens para múltiplas plataformas, desdobrando o conceito de memória-esquecimento. Confira a entrevista e conheça mais o trabalho de Hal:
Como chegou nesta técnica de misturar letras e imagens?
Essa série da máquina de escrever é feita com letras, mas a ideia veio através do ponto cruz. Eu fazia ponto cruz com a minha vó quando era pequeno, um trabalho artesanal muito demorado e detalhado onde você vai ocupando os espaços do tecido e construindo a imagem. Então, pensando, se eu conseguia fazer ponto cruz, então consigo fazer o mesmo com letras, passando a produzir esses trabalhos com a máquina de escrever. Isso tecnicamente falando. Mas a paixão pela máquina vem também da paixão pela literatura.
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Eu sou do Vale do Araguaia, que é uma região de fato bem no meio do meio do Brasil. Vivia na margem do Araguaia, onde não tinha nenhum curso de arte, então estudei literatura. E, durante o curso, a paixão pela palavra sempre foi forte. Comecei a produzir esses trabalhos que foram tomando o corpo e a palavra foi adquirindo uma vida própria quando se tornou um trabalho visual.
Quem entra em contato com a sua obra pode ter essa essas duas leituras?
Sim, dá para perceber que o trabalho é feito de letras, que algumas palavras estão meio que perdidas, algumas tentando ser escritas, outras frases incompletas. É como contar uma história mesmo.
Toda história pode ser contada de diversas formas, de acordo com a parte de quem viveu. Mas, no Brasil, nem todo mundo tem direito a contar a própria história, né? Então essa investigação escrita parte muito de um desejo de entender a minha história, de toda aquela violência que percebia e vivia na margem do Araguaia, que também é a violência que construiu a história do Brasil.
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Essa violência vem passada de geração em geração. E, como fragmento de uma história contada, sempre vão faltar partes. Sempre têm algumas lacunas que jamais serão preenchidas. Você pode perceber isso no trabalho. A imagem você consegue ver, mas não consegue ler o texto do início ao fim. Sempre parece que ele quer contar alguma coisa a mais; sempre parece incompleto e fragmentado.
“Dá para perceber que o trabalho é feito de letras, que algumas palavras estão meio que perdidas, algumas tentando ser escritas, outras frases incompletas. É como contar uma história mesmo”
Além da sua história, você conta muitas outras pelas suas obras. Me parece que você faz da contação um instrumento de batalha. Quais histórias você decide contar e por quê?
No Brasil, a violência do esquecimento é a principal. Na medida em que uma geração vai esquecendo o que as outras enfrentaram, é muito fácil que as violências continuem existindo e se aperfeiçoando, se tornando ainda mais cruéis. Têm muitas violências que o Brasil insiste em esquecer, como a violência da ditadura. A anistia foi uma violência de esquecimento. Também a violência da escravidão, que os livros de história insistem em esquecer, e a violência contra os povos indígenas, que têm tentado sobreviver desde quando a invasão aconteceu.
A luta contra essa violência do esquecimento está em tudo. Ela está em todas as camadas sociais porque é um instrumento de poder. Na medida que o povo esquece os sofrimentos que o trouxeram até aqui, ele vai lutar contra quem? Como que a gente consegue lutar se a gente não sabe simplesmente quem é ou contra o que estamos lutando?
A história do Brasil faz parte do seu trabalho. Como ela se conecta com a sua história?
Eu gosto muito de pesquisa histórica, de entender o Brasil, porque, na medida que vou entendendo esses fragmentos, vou também entendendo como as coisas estão agora e como tudo está se reproduzindo.
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O assunto da história sempre me interessou muito. Sou de uma região fora do litoral. Quando me reunia com alguns amigos que eram do sudeste para conversar, às vezes falávamos sobre aqueles assuntos de história, do que a gente viveu na infância ou tempo de juventude. Um dia, contei que no meu tempo de escola era super comum ter palmatória e ficar ajoelhado no milho.
Eu, com 32 anos hoje, passei por isso no sertãozão do Brasil, e percebi que a história que eu estava contando não era mesma dos meus amigos. Aquele Brasil que eles viviam era outro. Então enquanto eu vivia num Brasil submerso em violência, que chegou até lá através de uma ideia de progresso, no Sudeste e no Sul isso já tinha sido extinto. As pessoas que passavam por isso são da geração anterior à minha, e olhe lá.
Eu peguei isso criança, na primeira e segunda séries. Então isso me leva muito para um começo: essa história que estou percebendo é a minha, mas a história do Brasil é múltipla. Somos muitos Brasis. Então, na medida que estou contando a história de um, estou esquecendo a de outro. E como lutar contra essa política de esquecimento que está acontecendo o tempo todo?
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“A violência do esquecimento é a principal. Na medida em que uma geração vai esquecendo o que as outras enfrentaram, é muito fácil que as violências continuem existindo e se aperfeiçoando, se tornando ainda mais cruéis”
Hoje você vive em outro contexto, neste eixo do Sudeste em que a arte circula. Como você sente esse espaço?
É um processo como uma sátira e um movimento que aconteceu de fato. Quando o centro do Brasil começa a ser invadido politicamente, Getúlio Vargas dá àquele período um nome de “marcha para o oeste”. Os artistas que nascem nesse oeste são obrigados a futuramente fazer a “marcha para o sudeste”. Eu criei essa expressão, essa brincadeira, para retratar esse eixo que ainda possui um capital simbólico muito forte. Ser artista no Brasil é muito difícil. Então, em algum momento ou outro é necessário estar aqui. Também acho que é uma resistência ter eu, um artista fora daqui, tentando trazer novas narrativas, novas visões, novos Brasis, para mais uma vez quebrar essa barreira do esquecimento.
Quais autores te influenciam?
Tenho feito trabalhos em páginas de livros determinados. Não é mera escolha, é trazer foco sobre essa literatura, sobre essa história escrita e sobre as novas histórias que estamos escrevendo. Tem um termo de um livro do Darcy Ribeiro, “Povo Brasileiro”, que foi, e ainda é, muito importante na minha produção. O termo é ninguendade, e se refere aos primeiros brasileiros frutos dessa violência da invasão. Quando os portugueses iam embora, ficava filho de mãe indígena e de pai europeu, que culturalmente nenhum dos dois cuidava como família. São filhos de ninguém.
Dentro da minha pesquisa eu crio o “Ninguentude”. Ao me identificar com essa história – eu também não fui criado pelo meu pai e pela minha mãe -, e imerso nesse nesse cenário que eu vivia, vem a busca por essa identidade de pertencimento. Quem sou eu? Como fugir da sina de ser um zé ninguém morando no cu do mundo? Essa busca por pertencer, por não ser apagado, é inicialmente uma busca humana, mas percebo que ela não está só na minha história. Ela está na história da maioria dos brasileiros. E isso se torna um mergulho profundo nos meus trabalhos.
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