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Alejandro Claveaux domina a própria voz

O ator conta como precisou superar as dificuldades por ser gago e renunciou a uma carreira consolidada em busca de um sonho: trabalhar e viver de arte

por Humberto Maruchel Atualizado em 18 out 2022, 15h42 - Publicado em 17 out 2022 10h52
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(Clube Lambada/Ilustração)

ara o ator Alejandro Claveaux, 39, o gesto vem antes da palavra. Desde menino, ele enfrenta uma intensa batalha com a fala quando descobriu ser gago. Foram anos de tratamento em fonoaudiologia, mas sem esperança de superar o distúrbio neurobiológico por completo, diante da ausência de uma cura ou de único fator responsável.

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)

Natural de Goiânia, Alejandro tinha planos de uma vida estável, com passos bem definidos até que descobriu o teatro. Foi um ato não planejado que o colocou em cima de um palco pela primeira vez, e o fez seguir pela estrada das artes cênicas. Na época, estudava Engenharia de Alimentos na PUC-GO e namorava uma estudante da mesma universidade. A jovem tinha o desejo de participar de um grupo estudantil de teatro e se inscreveu para a seleção. No dia do teste, ela chamou Alejandro para acompanhá-la, mas mal sabia ele que sua companheira havia inscrito os dois para a seletiva.

Uma prova é sempre um momento assustador, especialmente quando se trata de uma demonstração em que é necessário recorrer ao corpo, à voz e às emoções para convencer uma banca de críticos sobre o seu talento. No limite, significa dizer que você está apto ou não para fazer algo.

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“A primeira vez que eu falei o texto ao vivo, eu não gaguejei. Pensei ‘caramba, eu gaguejo fora, mas não dentro do teatro”

Quando chamaram seu nome, Alejandro entrou em pânico. Foi empurrado pela namorada, essa já convencida de sua vocação, e não soube o que fazer. Não tinha nada preparado e nem experiência para se arriscar no improviso. Mas acima de qualquer preocupação estava o fato de ser gago. Essa era sua principal barreira. Tinha certeza que seria incapaz de atuar.

O ar preso no peito, o coração na boca: o pânico se converteu em lágrimas e nenhuma palavra saía. Mas a voz, contida até então, rompeu em um grito de angústia. Sua atuação fluía em estado cru de desespero misturado com a euforia de estar em cena. Havia também o desejo de se libertar de algo, algo que ele acreditava que o tornava menor do que os outros. E convém dizer que, das aflições humanas, a sensação de impotência é uma das mais aterrorizantes.

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Mas ali, num momento quase imprevisto, ele se transformou na mais pura emoção. Por um instante, estava dominado por sentimentos. O que sentia era mais importante do que a plateia que o assistia. “Foi ali que entendi o que significa atuar”, ele conta, do outro lado do vídeo.

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\ (Alejandro Claveaux/Arquivo)

Ao fim, quando conseguiu voltar a si, notou uma bancada de homens e mulheres comovidos e atentos a ele. Estavam seguros de seu talento – até mais do que ele próprio –, sem sequer imaginarem o que se passava em sua mente.

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Se esse fosse um consultório de terapia, é possível que esse episódio se tornasse algo como uma alegoria da vida de Alejandro. Ali, sua realidade virou do avesso. Foi aprovado em primeiro lugar na seleção, ele conta. Daquele momento em diante, percebeu que precisaria se dividir em dois ofícios que não tinham nenhuma ligação entre si.

Estabelecer-se numa carreira com a insegurança sobre o controle da voz e das palavras, junto à síndrome de impostor, além da instabilidade financeira, marcaram o início de sua caminhada. Em certo momento, Alejandro precisou fazer uma escolha e abandonar uma carreira estável para perseguir o sonho de ser e sobreviver como ator. Na época, aos 25, tinha uma fábrica de sorvete e vivia em Goiânia. Foi então que anunciou à família que iria embora para o Rio de Janeiro. A batalha pela estabilidade financeira e profissional estava prestes a começar novamente.

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)
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Sonho conquistado

Alejandro tem uma carreira de mais de 20 anos. Hoje é uma estrela da TV Globo, um dos novos galãs da emissora e uma voz forte quando se trata da representatividade para pessoas LGBTQIAP+. Ele foi bastante elogiado pelo seu trabalho mais recente, na minissérie Rensga Hits!, onde interpretou Deivid Cafajeste, um cantor sertanejo que vive um romance às escondidas com seu segurança.

Durante um evento de divulgação da série, o astro tascou um beijo em seu colega de cena, o ator Samuel de Assis, que viveu o par romântico de Deivid. Ele diz que fez questão que a representação desses personagens fosse feita de maneira a sobrelevar a história de amor entre os dois e não fosse mais uma narrativa sobre indivíduos em conflito com a sexualidade.

“Normalmente, o LGBTQIAP+ é representado pelo lado do fetiche ou da tragédia, passando a ideia de que, se você é gay, você vai morrer ou ter um final terrível, com morte ou violência. Faltam representações positivas, as pessoas já cansaram de ver as mesmas coisas há mais de 50 anos”

“O importante era mostrar o que ele sente nessa relação, não importa se ele saiu do armário, da cômoda, ou de onde for. Normalmente, o LGBTQIAP+ é representado pelo lado do fetiche ou da tragédia, passando a ideia de que, se você é gay, você vai morrer ou ter um final terrível, com morte ou violência. Faltam representações positivas, as pessoas já cansaram de ver as mesmas coisas há mais de 50 anos.”

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Se dentro das tramas ainda há resistência em falar de amor e sua diversidade com mais otimismo, os ensinamentos em casa lhe autorizavam a se relacionar da forma que quisesse e com quem quisesse. A liberdade era um valor do qual nunca abriu mão.

“A sexualidade nunca foi uma questão, desde sempre eu vivi histórias com mulheres e com homens. Sempre falei com muita naturalidade sobre isso tanto com amigos, quanto com a família.”

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)

Raízes no afeto

Alejandro carrega no nome a origem uruguaia da família e se divide entre duas pátrias. Seus pais vieram para o Brasil há 40 anos para reconstruir suas vidas. Foram parar em Piracanjuba, em Goiás, município no sul do estado, com pouco mais de 20 mil habitantes, antes de partirem para Goiânia, onde o ator nasceu. Lá, se instalaram e abriram uma fábrica de queijos. Cresceu numa casa muito simples, sem muita convivência com pessoas de fora, já que os pais ainda não estavam completamente integrados ao novo país.

“Lembro do meu pai, em casa, fazendo queijos na panela e vendê-los no bar da esquina para sustentar a família. A questão financeira era sempre uma luta, um drama. Mas havia, ao mesmo tempo, muito amor por parte deles.”

Dos quatro filhos criados numa casa onde o “portunhol” era o idioma oficial, ele é o único a carregar um nome comum de países com tradição e herança espanhola, trazendo algumas dificuldades na hora de se apresentar. Nesse meio tempo, atravessou várias vezes os dois territórios.

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)
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Do vizinho sul-americano, ele carrega orgulho das transições para tendências progressistas, com as quais se identifica. Fala abertamente sobre a legalização da maconha como uma decisão acertada para brecar o crescimento do tráfico de drogas e todas as circunstâncias associadas, como a criminalidade, e crê que essa poderia ser uma escolha bem sucedida também no Brasil.

Havia, ele recorda, desconfiança por parte de seus familiares com essa medida, mas que logo foi se desfazendo. “O Uruguai é um país muito provinciano e, por isso, carrega muitas semelhanças com Goiânia. Lá, possuem um governo muito liberal, mas a população é muito conservadora. Quando a maconha foi legalizada, minha família que vive lá ficou assustadíssima”, conta.

A mudança na legislação foi acompanhada de uma alteração no ponto de vista de seus parentes. “Houve uma redução de crimes ligados ao tráfico. Independente da população concordar ou não, ela [a medida] trouxe impactos positivos. Sem falar nos recursos financeiros que a cannabis trouxe.”

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)

Corpo presente

Alejandro não parece dar margem para muitas dúvidas atualmente. Ao menos, não aquelas que dizem respeito ao seu talento ou a permissão de ocupar alguns espaços. Lembra que,

No entanto, isso levou seis meses para acontecer, já que o primeiro módulo era todo dedicado à preparação física do ator.

“Do nada, ele [o diretor] me pediu para decorar um monólogo. Eu falei ‘preciso falar um negócio: eu sou gago, não vou conseguir fazer.’ E ele só disse: ‘cala a boca, você não é gago coisa nenhuma, bora, bora’. Ele não dava tempo para eu pensar.”

Mais uma vez, ele era surpreendido pelo imprevisto e tudo parecia indicar que aquele era, sim, o seu lugar. “A primeira vez que eu falei o texto ao vivo, eu não gaguejei. Pensei ‘caramba, eu gaguejo fora, mas não dentro do teatro.” A afirmação tem respaldo na ciência, uma vez que um ator, ao declamar um texto, aciona uma região do cérebro não ligada à fala espontânea e que, portanto, não é afetada por esse distúrbio.

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)
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Dois pesos, duas medidas

Se o medo de falar era uma constante, por outro lado, os momentos de silêncio exercitaram sua capacidade de observar, compreender e mimetizar tudo que era externo. Ele era um jovem tímido que queria se expor.

No começo da experiência como ator, surgiu um convite para um trabalho que consistia em observar e conviver com um chimpanzé. Finalizada a pesquisa, foram para sala de ensaio.

A pesquisa e a peça foram inspiradas no livro O macho demoníaco, de Richard Wrangham e Dale Peterson, que trata das origens da agressividade e crueldade humana. Naquele momento, Alejandro acabou não seguindo com o espetáculo, pois estava de mudança para o Rio de Janeiro.

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(Alejandro Claveaux/Arquivo)
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No novo estado, o universo deu as caras mais uma vez em favor do ator quando foi convidado pelo diretor João Falcão para estrelar a série Clandestinos, adaptada de uma peça de teatro – na qual Alejandro também atuou. Nela, interpretou outro Alejandro, um cara gago, que com o passar do tempo se revelava gay e um personagem argentino que se torna, ao fim, um homem-macaco. “Era o meu momento, foi escrito para mim.”

A conversa se aproxima do fim e quase como se tivesse lembrado de algo que estava na ponta da língua há pouco, ele diz que tem um superpoder. Talvez esse seja o momento de honrar aquele menino que se pensava tão diferente dos outros e reconciliar com sua história.

Seu poder é a capacidade de observar, de ver aquilo que está invisível aos olhos. “Fui uma criança muito sensível e me tornei um adulto capaz de entender o sentimento do outro sem que ele precise falar. ‘Como posso fazer essa pessoa se sentir acolhida e incluída?’ Era uma pergunta que eu me fazia justamente porque eu sempre me sentia de fora.”

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