Feminista, negra, LGBTQIA+ e trabalhadora da saúde, a vereadora de São Paulo Luana Alves foi eleita ao levantar a bandeira do SUS em meio à pandemia
por Heloisa Aun
22 jul 2021
23h47
eminista negra, LGBTQIA+, trabalhadora da saúde e líder do PSOL na Câmara Municipal. Apesar da multiplicidade de atuações, a militância de Luana Alves, vereadora mais jovem da história de São Paulo, tem um foco principal nesse momento: utilizar seu cargo em lutas nacionais e derrotar o bolsonarismo. Antes de pensar em seu futuro na área pública, sua urgência é combater um presidente autoritário que quer eliminar toda a oposição, inclusive do ponto de vista institucional. “Isso é o ponto zero da discussão política e, por isso, sou a favor do impeachment. Se for para vencer no voto em 2022, o que vai sobrar do Brasil até lá?”, reflete.
Em 2020, 37.550 mil pessoas acreditaram e votaram em Luana, que levantou a bandeira do SUS em meio a um cenário catastrófico de pandemia. Mais do que isso, ela se elegeu com pautas que vão na contramão do governo atual: a valorização da educação e da saúde pública, e a luta antirracista, antifascista, das mulheres, das periferias e dos LGBTQIA+. Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP), a vereadora é especializada em Saúde Coletiva e Atenção Primária, tendo atuado em UBSs da zona leste de São Paulo. Durante a universidade, se articulou pela implantação das cotas raciais e sociais na instituição, época em que conheceu a Rede Emancipa, movimento social de cursinhos populares criado com o objetivo de proporcionar o acesso de milhares de estudantes de escola pública à universidade.
Ao pisar pela primeira vez na Câmara Municipal, Alves sabia que seria uma trajetória difícil, mas não imaginava os entraves que enfrentaria como mulher negra em um órgão majoritariamente composto por homens brancos heterossexuais. E isso se reflete em situações de agressão e preconceito que vivenciou em seis meses de mandato. “Como socialista, eu tenho a visão de que aquele espaço não representa o povo, portanto, não tenho compromisso com o local físico da Casa. Eu tenho respeito pelas pessoas e pela população da capital paulista”, revela. Além disso, alguns aspectos a surpreenderam, como a dificuldade que a oposição tem para conquistar um pouco de espaço de atuação e como o governo é blindado.
“Como socialista, eu tenho a visão de que aquele espaço [a Câmara Municipal] não representa o povo, portanto, não tenho compromisso com o local físico da Casa. Eu tenho respeito pelas pessoas e pela população da capital paulista”
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Da militância ao poder
O envolvimento na militância tem relação direta com suas origens. Luana Alves nasceu e cresceu em Santos, no litoral de São Paulo, em uma família de esquerda e vinculada à política. Sua mãe é assistente social, negra, militante e batalhou na luta antimanicomial. Já seu pai estudou sociologia, sem terminar o curso, e sempre foi militante do PT, chegando a se tornar dirigente do partido na cidade. Depois, ele se mudou para a Bahia, onde assumiu como dirigente do PT no estado, época em que a sigla perdeu em Santos e ganhou várias prefeituras no interior do nordeste. “A minha vida foi a de uma menina que teve acesso a várias coisas. Nunca fomos ricos, mas também não passei necessidade. Meus pais são separados desde muito pequena e eu cresci com essa militância dos dois lados”, conta.
A infância da vereadora foi marcada por fazer campanhas do PT. Sua mãe, uma de suas referências familiares de mulheres negras, também era filiada ao partido e a colocou em um lugar de militância, especialmente contra o racismo que a atravessava na escola. Luana estudou em colégios particulares com bolsa de estudos e, no Ensino Médio, em uma instituição pública. Em seguida, conseguiu uma bolsa em um cursinho pré-vestibular, o Objetivo de Santos, o qual pagava R$150 mensalmente. Seu sonho era fazer Psicologia em uma universidade pública, desejo estimulado pela mãe. Em 2012, passou na USP e se mudou para São Paulo.
A escolha pela psicologia surgiu a partir da junção de duas afinidades: a área da saúde e a de humanas. “Gosto de lidar com pessoas, falar com elas, entender processos sociais… E a psicologia se encaixa nisso”, lembra. No entanto, ao entrar na USP, recorda que a universidade parecia um espaço fora do Brasil para sua realidade. Eram apenas duas pessoas negras em toda a turma entre os aprovados daquele ano, incluindo ela mesma. A princípio, ficou bastante deslocada, pois estava em um lugar com pessoas de estratos sociais que desconhecia. Embora tenha havido essa dificuldade inicial, Luana encontrou seu grupo com estudantes que vieram de escola pública.
“Era junho de 2013, época dos protestos, e lembro que apanhei muito. Ao chegar em casa, tinha certeza de que Dilma daria uma declaração contra o Alckmin. Eu estava no telefone com meu pai, que era contra as manifestações porque prejudicava o Haddad, e ele me falava que não tinha possibilidade de a passagem abaixar”
Duas coisas a fizeram persistir e continuar na USP, do ponto de vista emocional: a primeira delas, ter começado a estudar políticas públicas de saúde e estagiar no SUS durante o segundo semestre, e, a segunda, o movimento estudantil antirracista dentro da própria universidade. “Éramos poucos, mas nos juntamos. Eu fui do DCE [Diretório Central dos Estudantes], do Centro Acadêmico, da Ocupação Preta… E isso me fez ficar. Achei essas duas possibilidades de sentido naquele espaço, além das demais vivências da capital paulista, porque morei no Butantã, Grajaú, em diferentes locais, e passei períodos de não ter ‘grana’”, relata.
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Acima de qualquer curso ou universidade, Luana Alves tinha um desejo intrínseco a ela: ser militante. “Na minha cabeça, política era igual militar. Não era algo ligado ao cargo eletivo”, explica. Aos 19 anos, em janeiro de 2014, se filiou ao PSOL e participou de campanhas, atos e construções dentro do partido, onde conheceu muitos movimentos populares, como a Rede Emancipa. Para a vereadora, entrar na política era ser parte de um movimento coletivo.
Quando veio a possibilidade de ser candidata, a jovem revisitou suas próprias determinações, sua relação com os pais e a militância para entender se fazia sentido. A influência dos pais na política é inevitável, mas Luana decidiu trilhar seu caminho a partir de suas percepções. Ao ter contato com militantes do PT e do PSOL, ainda na USP, se identificou mais com os do segundo partido. “Era junho de 2013, época dos protestos, e lembro que apanhei muito. Ao chegar em casa, tinha certeza de que Dilma daria uma declaração contra o Alckmin. Eu estava no telefone com meu pai, que era contra as manifestações porque prejudicava o Haddad, e ele me falava que não tinha possibilidade de a passagem abaixar”, afirma.
No dia seguinte, ouviu a então presidenta da República dizer que se fosse preciso colocaria o exército na rua. “Foi uma ruptura de sonhos com o PT”, acrescenta. A partir daí, a líder do PSOL na Câmara Municipal tomou outra opinião, porém, garante que ela e o pai têm uma ótima relação. Mesmo discordando em vários aspectos, ele sente um orgulho enorme da filha. Sua mãe, que se desfiliou do PT em 2007, também não concorda com tudo do PSOL, mas apoia e admira Luana por sua história e conquistas.
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Defender o SUS é revolucionário
As pautas prioritárias da psicóloga incluem diferentes esferas da sociedade, mas, para ela, são todas partes de uma mesma luta antissistêmica, que tem a ver com o anticapitalismo. Luana, que se considera socialista, foi construindo desde 2014 grupos e coletivos os quais acredita, como feminismo negro, educação popular e a militância estudantil na área da saúde. As batalhas que travou e trava até hoje, por exemplo, relacionadas à emancipação das mulheres e ao antirracismo, buscam promover uma ruptura da estrutura do mundo atual.
Antes de ocupar um cargo político, Luana já admirava muitas mulheres do PSOL e tomou suas trajetórias como inspiração para chegar até aqui. “Lembro de ver a Heloisa Helena na TV e a achava maravilhosa. Também tenho muita admiração pela Luciana Genro, inclusive sou parte do mesmo grupo político que ela, o MES (Movimento Esquerda Socialista)”, diz. Além disso, há as figuras mais próximas de sua construção cotidiana, como Sâmia Bomfim e Monica Seixas. “Sempre gostei disso no PSOL: nossos parlamentares são pessoas que constroem o partido na base, e não estrelas. Eles fazem parte de um projeto coletivo. Foi isso que me convenceu a ser candidata”, reflete.
Como militante, Alves não almejava ser vereadora até que algumas pessoas de dentro do grupo político o qual faz parte idealizaram essa ideia, ainda sem consultá-la. Todos sabiam da proximidade das eleições e queriam que alguém do movimento disputasse um cargo. Naquele momento, ela era residente em UBSs de São Paulo e seguia o percurso que sonhou. “Meu sonho de princesa era trabalhar na UBS durante a semana construindo o SUS, aos sábados construir o cursinho da Rede Emancipa e também participar do PSOL”, explica.
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Quando alguns coordenadores da Rede Emancipa, Naiara e Maurício, falaram sobre a possibilidade com Luana, ela respondeu de forma negativa. “Eles disseram que era importante ter pessoas ligadas ao nosso grupo, que é nacional, fazendo parte de uma mesma plataforma política que tivesse como bandeira a educação popular, o antirracismo e o poder para as periferias dentro do PSOL. Um movimento interno e que precisava de nomes em São Paulo”, relata.
Mesmo assim, ela demorou certo tempo para aceitar. Para isso, Sâmia e Monica entraram na “jogada” e a chamaram para conversar, falando de um lugar de afeto. “Monica me fez entender a posição em que estou em um cargo de poder. Parece que é uma vergonha disputar esse espaço enquanto mulher negra”, acrescenta. Aos poucos, a então candidata concordou e passou a construir sua campanha. Na fase final, queria muito ganhar, mais do que poderia imaginar. Todos já sabiam que o PSOL aumentaria o número de cadeiras, no entanto, ninguém fazia ideia de que subiriam de duas para seis no total, nem nas previsões mais otimistas.
“Monica me fez entender a posição em que estou em um cargo de poder. Parece que é uma vergonha disputar esse espaço enquanto mulher negra”
Em um cenário de colapso das instituições e da urgência da área da saúde, Luana Alves se posicionou como uma candidata defensora do SUS, central para o país. “A gente vive em um sistema de capitalismo periférico, extremamente explorador, organizado econômica e socialmente para massacrar e cortar direitos públicos do ‘andar de baixo’. E nem é para garantir o ‘bem-estar social’”, analisa.
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O SUS é o tensionamento dessa estrutura, contrário ao que ela estabelece, pois, como sistema universal, foi pensado para atender qualquer pessoa, é financiado de forma pública e representa uma conquista não de governos, mas de movimentos sociais, sindicais, eclesial de base, operário e sanitário, como mostra a vereadora. “Graças a uma confluência de lutas populares, em 1988 a Constituição foi forçada a promover um ordenamento jurídico que garantisse que saúde é um bem comum”, adiciona. Para um país de capitalismo periférico, a existência do SUS é algo extremamente avançado e não há algo do tipo na maioria dos países.
“Defender o SUS é muito revolucionário não só pelo sistema, mas pela política que ele traz e coloca para a população brasileira: de que a vida de quem tem dinheiro vale o mesmo da de quem não tem”, ressalta. Para ela, isso vai na contramão da formação social e política do Brasil, que é a da vida preta e pobre valendo menos. Seus anos em UBSs foram fundamentais para sua experiência e também para os votos. Muitos profissionais com quem trabalhou na residência se identificaram com ela, e não só pessoas de esquerda. “O SUS não é uma pauta, é uma parte importante da política.”
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Uma mulher negra na Câmara
Até 2020, a Câmara Municipal de São Paulo só havia elegido duas mulheres negras em séculos de existência. Mas, nas eleições do último ano, apenas o PSOL colocou no poder quatro representantes desse grupo. Como consequência, Luana vive o racismo por sua existência dentro daquele local. “A primeira situação de racismo é a própria estrutura do lugar. Você entende que aquilo não é feito para você, pois é de manutenção dos interesses de uma elite que sempre mandou na cidade”, reflete.
A chegada de Luana por si só já seria difícil, porém, ela entrou como liderança do PSOL, partido ainda mais combatido com o aumento de duas para seis cadeiras na Câmara. Atualmente, PT e PSDB têm oito cadeiras cada, enquanto DEM e PSOL têm seis por partido. “Há uma movimentação recorrente em volta de nós para tolher nossos passos”, revela. Prova disso é a vereadora ser pouco reconhecida como líder do partido e, consequentemente, ter de se esforçar para exercer sua posição.
Na Câmara, existe o Colégio de Líderes, que reúne as pessoas à frente de cada bancada para decidir as pautas a serem votadas e outros pontos relevantes. Logo no primeiro ou segundo mês de mandato, a psicóloga estava andando pelos corredores e identificou uma movimentação estranha dos colegas, portanto, os seguiu e entrou na sala junto com eles. Naquele dia, todas as lideranças estavam em uma reunião com o então vice-prefeito, a qual ela não foi chamada. “Se eu não tivesse seguido eles, o PSOL ficaria sem participar daquela reunião. É toda uma movimentação para nos excluir, pois sou uma mulher negra.”
O relato acima não inclui as inúmeras grosserias das quais já foi vítima. Por exemplo, quando houve uma votação da prioridade da vacinação, seu mandato colocou uma emenda para incluir todos os profissionais da educação. “A emenda perdeu no voto. Nas minhas redes sociais coloquei os vereadores que votaram contra, lista que é acessível a todos que quiserem ver”, conta. Não demorou para que o grupo de WhatsApp dos outros vereadores virasse de cabeça para baixo, com mensagens repletas de ofensas. Tinha gente falando que ela iria para a Corregedoria da Câmara, que é a Comissão de Ética do órgão, onde poderia perder o mandato.
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Nessa ocasião, a vereadora decidiu não retrucar ou tirar satisfações, mas em outros momentos ela enxerga a necessidade de se colocar. Um exemplo ocorreu no último ano: a Câmara estava discutindo questões de pautas de saúde e o presidente falou sobre o Plano Diretor, que é importante, mas havia um consenso em adiá-lo na pandemia, senão passaria sem participação popular. “Ele introduziu o assunto sem falar com a oposição, isso não se faz. E ainda trouxe um dado falso, dizendo que teríamos alcançado um ‘vértice’ em São Paulo em relação ao número de infecções e mortes, ou seja, que só cairia dali para frente”, lembra.
Luana se posicionou de forma contrária à afirmação e sugeriu que o colega alinhasse esse discurso com o Secretário de Saúde, que tinha falado para a imprensa que o mês seguinte seria o pior de todos. Após ser interrompida e ofendida pelo colega, não se calou. “Achei importante responder porque ele me desrespeitou em público. Se você não se posicionar, você é massacrado, principalmente se é mulher negra. Ou mostra força ou passam por cima de você”, acrescenta.
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Como LGBTQIA+, a psicóloga percebe que muitos vereadores tentam usar sua existência e das demais pessoas da comunidade como uma ameaça social. No entanto, a grande ameaça são eles. Já o preconceito do dia a dia ela não sofre tanto, pois é uma mulher cisgênero, apesar de ser casada com outra mulher. “Não se fala sobre minha sexualidade próximo de mim, mas sei que eles me entendem como uma ameaça. A gente percebe isso na maneira como os projetos de lei são colocados, a partir das ‘piadinhas’ internas homofóbicas e na completa heteronormatividade daquele espaço”, explica. De toda forma, a Câmara Municipal da capital paulista tenta parecer mais progressista e passam menos pautas conservadoras do que na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
O cenário majoritariamente heteronormativo e branco tem se transformado aos poucos, com novos perfis de políticos progressistas eleitos. Como uma forte representante desse grupo, Luana tem alguns projetos para o ano de 2021: a plataforma “Poder para as periferias”, o “São Paulo é solo preto e indígena”, sobre as nomeações de ruas e praças com nomes de heris e heroínas negras, um PL para suspender a suspensão de concursos públicos por conta da pandemia, além das propostas específicas na área da saúde, como a sala de descompressão para enfermagem, técnicos de enfermagem e outros profissionais, que, muitas vezes, descansam no chão em hospitais da cidade.
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