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experimentação

Manual da brisa

Publicada em 1964, A Experiência Psicodélica é relançada no Brasil em momento fundamental de estudos científicos com drogas
por Artur Tavares
19.07.2022
10h54
Capa A Experiência Psicodélica
Aleph/Divulgação
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Tudo começou com um pequeno grupo de cientistas que esbarrou, conscientemente ou não, em substâncias psicodélicas. Albert Hoffman criou o LSD em seu laboratório enquanto pesquisava a eficiência de um fungo para conter sangramentos excessivos na gravidez; botânicos franceses e americanos já haviam isolado a mescalina do peiote no final do século 19; o MDMA foi sintetizado pela farmacêutica alemã Merck ainda em 1912, quando a empresa procurava uma maneira de acelerar a coagulação do sangue.

Cinco anos após o suicídio de sua esposa, o psicólogo americano Timothy Leary ficou sabendo de rodas xamãs mexicanas que administravam pscilocibina, promovendo curas e acessos ao divino. Em 1960, teve sua primeira experiência com cogumelos. Quatro anos depois, publicou A Experiência Psicodélica junto dos colegas Ralph Metzner e Richard Alpert. O livro, relançado há pouco tempo no Brasil, revolucionou a psicodelia e facilitou a entrada de muitos nos campos da mente, servindo como um manual de condução guiada para experiências com ácido, DMT e qualquer outra substância química ou natural que afeta o campo neural.

A ciência – aquela que te recomenda tomar vacina e não hidroxicloroquina – trabalha através do que é empírico. Por isso, Leary, Metzner e Alpert desenvolveram um método para administrar os psicodélicos em seus pacientes e objetos de estudo com a esperança de que processos iguais gerariam observações valiosas sobre os efeitos de tais substâncias. Se os três pesquisadores passaram por experiências xamânicas, eles não deixaram de lado a observação sagaz de que aquele espaço ritualístico fornecia duas características fundamentais para que a psicodelia fluísse em seu auge: set e setting.

Hoje, quase 60 anos depois de A Experiência Psicodélica, os cientistas mais renomados do atual renascimento psicodélico se baseiam nas regras de set e setting para fazer seus estudos – nomes como Sidarta Ribeiro e Luís Fernando Tófoli, no Brasil, e Roland Griffiths no exterior. Mas, o que isso significa?

Começando a viagem

O conceito de set diz respeito à como está o estado mental do “psiconauta” – tomando o termo popularizado pelo jornalista Marcelo Leite para definir o usuário de substâncias psicoativas em contextos controlados. Já o setting tem a ver com o ambiente onde a experiência psicodélica acontecerá.

Em reportagem publicada em 2021 aqui na Elástica, Sidarta Ribeiro define: “A experiência psicodélica tem que ser assistida que nem um esporte radical. Quanto mais especial for o setting, como uma cachoeira em um dia maravilhoso, melhor será o trabalho”.

Para Leary, Metzner e Alpert, o setting perfeito de A Experiência Psicodélica está intimamente ligado ao Livro Tibetano dos Mortos, um tomo ancestral da literatura budista que aborda a roda cármica e o ciclo eterno de morte e renascimento, um volume que foi estudado por Carl Jung dentro do aspecto da psicologia antes da primeira revolução psicodélica.

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Como os próprios cientistas explicam no livro, cada interpretação psicodélica individual está intimamente ligada aos signos e símbolos que racionalizamos em nossas vidas. Nesse contexto, não é difícil entender a escolha dos pesquisadores pelo Tibete: nos anos 1960, o mundo ocidental passava por uma invasão da cultura indiana, com gurus budistas e hinduístas inspirando celebridades e pessoas comuns com lições de autoconhecimento até então rejeitadas pela racionalidade do pensamento europeu.

Morte e vida em uma sessão

Falar sobre o Livro Tibetano dos Mortos também é uma maneira de tentar compreender uma pergunta fundamental que os psicodélicos trazem em suas experiências: vivemos realmente como seres individuais, ou há um véu de ilusão que nos impede de experimentar uma outra realidade?

Enquanto os ensinamentos indianos ancestrais já lidavam com a transcendência do corpo e do espírito de maneira muito aberta há milênios, outras doutrinas ocidentais lidaram com essa questão ou de maneira críptica, ou negaram completamente essa possibilidade a não ser através da metafísica. É verdade que outros povos originários também se debruçam sobre essa questão há milênios, mas as colonizações perversas dos continentes americano e africano, principalmente, dizimaram boa parte do conhecimento ancestral, confundido por vezes como bruxaria e paganismo. Isso significa que o Livro Tibetano dos Mortos seja uma das fontes mais antigas sobre o tema, cujas lições podem ser praticadas por todos que assim desejarem.

Leary, Metzner e Alpert propõem, então, um trabalho assistido – cuja condução pode ser guiada através de interferências, mas que deve acontecer principalmente em estado meditativo individual, ainda que a dinâmica aconteça em grupo.

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Parece estranho propor um uso recreativo de psicodélicos dessa maneira, hoje, sendo que o set e setting são mais utilizados em estudos clínicos ou rituais xamânicos, como com ayahuasca, mas as lições de A Experiência Psicodélica também servem como preparação para o viajante ocasional não entrar em bad trips, ou mesmo tirar o medo de um marinheiro de primeira viagem (astronauta, talvez?).

No controle da sua brisa

Quem já passou por uma série de experiências psicodélicas com set e setting sabe o quanto esses dois aspectos são fundamentais para alcançar os estágios mais “avançados” de consciência, enquanto o uso recreativo – em uma festa por exemplo – te permite chegar apenas a um limiar mais baixo, já que seu eu interior tem a atenção disputada com um universo de cores, sons e sabores do mundo exterior.

No entanto, o livro não deve soar ao leitor como uma moralização da maneira que você usa sua droga, mas sim como um documento histórico de como tudo começou, e um guia básico de como proceder. O que deve ficar claro é que Leary, Metzner e Alpert sugerem um método que serve como padrão científico de eficácia até hoje.

Portanto, se você é como eu e acredita na ciência, confie que a Terra não é plana e dê uma chance à sua onda da próxima vez que for dropar um ácido e faça à maneira proposta em A Experiência Psicodélica. Você não irá se arrepender.

Como últimas notas, vale parabenizar a editora Aleph por essa nova edição do livro – que vem com um pôster com a ilustração de capa. A publicação tem tradução competente e um projeto gráfico impecável, onde as cores do texto mudam a cada poucas páginas, como o caleidoscópio que é uma das principais visões proporcionadas pela psicodelia.

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