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Não me chama de japa

Conversamos com Ana Hikari, atriz e comunicadora, sobre representatividade amarela nas telas, sexualidade e luta antirracista

por Beatriz Lourenço Atualizado em 21 jun 2022, 12h30 - Publicado em 19 jun 2022 20h49
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(Arte/Redação)

inda que seja um tema extremamente importante para a sociedade, pouco se fala sobre o estigma que pessoas amarelas – as nascidas ou com ascendência de países do leste asiático, como japoneses, chineses e coreanos, entre outras nacionalidades – sofrem no dia a dia. A atriz Ana Hikari, por exemplo, foi a primeira atriz amarela a protagonizar uma novela da Rede Globo – e, pasmem, isso só aconteceu em 2017. A personagem de Malhação, Tina, e seu núcleo de amigas fez tanto sucesso que ganharam uma continuação, a série As Five

“Quando começamos a entrar nesse ambiente, sempre tentamos não ser estigmatizados e não fazer papéis que sejam pejorativos a nossa identidade racial. Queremos personagens complexos e que tratem de diversas questões, não só sobre racialização”, conta à Elástica. “Minha esperança é que isso reverbere no futuro e tenhamos mais protagonistas negros e negras e, principalmente, mais protagonismo indígena.”

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Na novela Quanto mais vida, Melhor!, Ana interpretou Vanda e trouxe outro tema importante ao horário nobre: os relacionamentos não monogâmicos. Para ela, a ideia de tratar o assunto sem tabu é importante para que as pessoas entendam que existem diversas formas de amar. E é assim que ela se relaciona atualmente. “Acho que para mim é o que mais funciona. Já tive relacionamentos monogâmicos e me disponho a estar em um quando é algo muito importante para a pessoa”, afirma. “No fim, se relacionar é sobre escutar quem está contigo e saber como esse indivíduo se sente mais confortável, além de ceder em alguns momentos.”

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Nas redes sociais, a comunicadora viralizou com um vídeo no Instagram no qual dá um conselho: “não me chama de japa”. Na publicação, ela ressalta que esse apelido é racista e tira a individualidade de cada um. “Quando falo sobre identidade racial amarela é porque temos que nos reconhecer. A ideia de não me chamarem de japa é um detalhe cotidiano de apagamento que compõem a estrutura do racismo e falar sobre isso faz as pessoas refletirem e reajustarem suas falas”, diz. ​​

Ao longo do nosso papo, a atriz comentou que a falta de representatividade na mídia também acontece quando os artistas estão fora das telas. É o que aconteceu no filme Red – Crescer é uma fera, da Disney, que foi o primeiro com uma protagonista asiática mas, na hora de escolher os atores da dublagem brasileira, não houve diversidade. “Se qualquer um assistir ao making of do filme, verá que a diretora fala sobre a importância de mulheres na equipe e de mulheres amarelas no longa. O porquê não nos chamaram não sei, mas fico chateada porque há falta de acesso para nós – e não de talento”, completa. Abaixo, você confere nossa entrevista completa com Ana Hikari:

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(Giselle Dias/Divulgação)

Você participa da novela Quanto mais vida, Melhor! com a personagem Vanda. Como foi essa experiência? Qual tem sido o maior aprendizado nessa jornada?
Foi um privilégio ter feito esse trabalho porque estávamos no auge da pandemia e sair de casa com cuidados e segurança foi muito bom. Além disso, aprendi muito com essa personagem! Pude praticar o sotaque carioca pela primeira vez e comecei a treinar pole dance, que é algo que quero levar para a vida – foi algo muito bom para o meu corpo, autoestima e para a mente também. 

Vanda vive um relacionamento poliamoroso e isso vai ao ar em horário nobre. A monogamia tem sido uma pauta muito debatida na internet também. Qual é a importância de trazer essa reflexão para a TV? Você já viveu – ou vive – experiências não monogâmicas?
É genial eles colocarem essa temática nesse horário porque a gente fala sobre isso de uma maneira super leve, simples e divertida. Ainda há muito tabu quando falamos sobre isso porque as pessoas estão acostumadas com a monogamia e acham que essa é a única maneira de se relacionar – e não é. Existem diversos outros jeitos de criar relacionamentos saudáveis e esse trio da novela trouxe uma nova abordagem para discutir o assunto. 

Já vivi e vivo agora experiências assim. Acho que para mim é o que mais funciona. Já tive relacionamentos monogâmicos e me disponho a estar em um quando é algo muito importante para a pessoa. No fim, se relacionar é sobre escutar quem está contigo e saber como esse indivíduo se sente mais confortável, além de ceder em alguns momentos. O mais importante quando a gente gosta de alguém é a escuta, independente se falamos de namoro, amizade ou relações familiares.

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“Já vivi e vivo experiências poliamorosas. Para mim é o que mais funciona. Já tive relacionamentos monogâmicos e me disponho a estar em um quando é algo muito importante para a pessoa. No fim, se relacionar é sobre escutar quem está contigo”

Outra personagem marcante da sua carreira é Tina, de Malhação, que também ganha espaço na série As Five – uma versão mais adulta da narrativa. Como foi crescer com a personagem e tratar de temas como trabalho, drogas, sexo e racismo na trama?
A Tina é um presente porque a partir dela que entrei para a TV Globo e pude falar sobre esses assuntos de uma forma que alcança tanta gente. Sempre recebo muitas mensagens de carinho e reconhecimento desse trabalho porque além de ser entretenimento, o projeto traz discussões muito pertinentes ao país – ainda mais nesses últimos anos. A potência que essa personagem trouxe é muito positiva e me deixa muito feliz enquanto artista. Isso porque faço arte para poder levar as mensagens que quero para a sociedade – abordar questões de representatividade, machismo, racismo, é um privilégio imenso. 

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(Giselle Dias/Divulgação)

Você foi a primeira atriz amarela a protagonizar uma novela da Rede Globo e isso só aconteceu em 2017. Ao mesmo tempo, é comum que atrizes brancas sejam escolhidas para interpretar personagens orientais. Por que isso ainda acontece tanto?
Ainda há uma falta de conscientização sobre questões raciais no Brasil. O movimento negro, por exemplo, existe há muitos anos, mas só está sendo de fato ouvido pela sociedade de uns tempos para cá. Ele ensinou muito para pessoas amarelas sobre posicionamento. Também aprendi muito com o movimento indígena, que existe e resiste há mais de 500 anos. Esse atraso na escuta dessas pessoas acaba refletindo nas pautas de pessoas amarelas e, consequentemente, na mídia, nas produções audiovisuais e na cultura. 

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Quando começamos a entrar nesse ambiente, sempre tentamos não ser estigmatizados e não fazer papéis que sejam pejorativos a nossa identidade racial. Queremos personagens complexos e que tratem de diversas questões, não só sobre racialização. Minha esperança é que isso reverbere no futuro e tenhamos mais protagonistas negros e negras e, principalmente, mais protagonismo indígena. E não é como se não tivessem histórias para contar: assistimos Alma Gêmea e Tainá, por que essa narrativa não foi para uma novela? Temos indígenas no Pantanal também, por que não há um protagonista indígena na novela? Há muitas histórias, o que falta é disposição de quem produz para modificar um pouco o cenário vigente. 

O filme Red – Crescer é uma fera, da Disney, foi o primeiro com uma protagonista asiática mas na hora de escolher os atores da dublagem, não houve diversidade. Até quando as pessoas asiáticas não estão fisicamente presentes na tela, isso continua acontecendo?
Sim, e acho um absurdo não terem refletido sobre isso, principalmente porque a Disney tem uma forte política de representatividade. Se qualquer um assistir ao making of do filme, verá que a diretora fala sobre a importância de mulheres na equipe e de mulheres amarelas no longa. Essa questão já é pensada em outros países de maneira muito enfática e o Brasil está completamente atrasado porque não leva isso em consideração. 

É um absurdo que nem tenham feito testes para poder selecionar um elenco com atores asiáticos. Se considerarmos a admissão de star talent, que é o caso da escolha de atores renomados, poderiam ter chamado pessoas que, inclusive, já têm experiência com dublagem. Jacqueline Sato, Dani Suzuki e Carlos Takeshi já fizeram trabalhos incríveis. Eu não tenho experiência profissional, mas fiz o curso na Herbert Richers, na Sociedade Brasileira de Dublagem e aulas particulares. O porquê não nos chamaram não sei, mas fico chateada porque há falta de acesso para nós – e não de talento.

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“O movimento negro ensinou muito para pessoas amarelas sobre posicionamento. Também aprendi muito com o movimento indígena, que existe e resiste há mais de 500 anos. Esse atraso na escuta dessas pessoas acaba refletindo nas pautas de pessoas amarelas e, consequentemente, na mídia e na cultura”

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(Giselle Dias/Divulgação)

Você viralizou nas redes com um vídeo dizendo o quão problemático é o apelido “japa”. Ao mesmo tempo, vivemos em um país com maioria negra onde há incontáveis exemplos de racismo. Como é levantar a bandeira contra o preconceito racial a pessoas amarelas? já diminuíram sua luta? O que falta para que o debate seja ampliado?
Eu levanto essa questão sobre pessoas amarelas porque acredito que o que estamos combatendo é a hegemonia branca. Esse é um ponto de convergência na luta do racismo estrutural do nosso país que é contra os negros – é um racismo que mata, que exclui e que deixa pessoas à margem. A gente se associa com o objetivo de entender que a gente não pode mais ser ferramenta para a branquitude. Precisamos impedir que a opressão continue acontecendo. 

Quando falo sobre identidade racial amarela é porque temos que nos reconhecer. A ideia de não me chamarem de japa é um detalhe cotidiano de apagamento que compõem a estrutura do racismo e falar sobre isso faz as pessoas refletirem e reajustarem suas falas.

Recentemente, a atriz Bruna Aiiso contou nas redes que uma campanha de dia das mães recusou sua participação porque sua mãe é negra. Ainda falta representatividade das famílias brasileiras reais nas telas e nas criações de conteúdo?
Falta muito! As famílias diversas existem e elas precisam estar presentes no audiovisual. No filme “Para todos os garotos que já amei”, o pai da protagonista é branco e ela e as irmãs são amarelas. Isso é lindo porque minha família é assim: meu pai é negro e a minha mãe é amarela. A mãe da Bruna é negra e seu pai é amarelo. Aqui no Brasil, há muita mistura, mas o audiovisual está atrasado. Eu poderia fazer a filha, por exemplo, do Ailton Graça ou até uma parente do Antônio Fagundes – é só a gente entender que a composição familiar é diversa e essa representatividade deve existir. Precisamos entender que a sociedade vai aceitar conteúdos assim porque é essa a realidade. Dá para propor diversidade sem medo e sem menosprezar o público. 

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Uma das primeiras vezes que você falou abertamente sobre ser bissexual foi numa live, onde comentou que escondeu isso por um tempo. O que te deu coragem de assumir e como isso pode inspirar outras pessoas?
Foi muito curioso porque quando saiu matérias sobre a live a manchete foi: “Ana Hikari assume bissexualidade”. Quem me acompanha há muito tempo nas redes ficou confuso, porque todo mundo já sabia. Sempre falei sobre minha sexualidade, a diferença é que nunca dei um comunicado oficial porque não senti necessidade. Assim como isso nunca aconteceu em relação aos meus pais – não sentei com eles e falei “mãe, pai, sou bi”. Sempre tive um diálogo muito sério e aberto com todos na minha vida, a única coisa que aconteceu de diferente foi que nessa live rolou um burburinho a mais. 

Nunca falei isso em entrevistas, de fato, porque na época da Malhação tinha um casal, a Lica e a Samantha, que o público estava muito feliz de acompanhar. Até aquele momento, a gente nunca tinha olhado para a TV e visto essa representatividade. Quando vi que estava todo mundo apaixonado pelo casal, senti que não era a hora de falar publicamente para não parecer que eu estava me aproveitando de uma onda de sucesso que as meninas estavam tendo. Mas nunca deixei de falar sobre isso livremente, foi um processo muito natural e não era algo que estava escondendo. Sempre falo que se a Malhação que eu assistia tivesse o que a minha Malhação entregou, talvez tivesse sido muito mais simples para a Ana bissexual adolescente entender as questões que ela tinha.

“Quando falo sobre identidade racial amarela é porque temos que nos reconhecer. A ideia de não me chamarem de japa é um detalhe cotidiano de apagamento que compõem a estrutura do racismo e falar sobre isso faz as pessoas refletirem e reajustarem suas falas”

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(Giselle Dias/Divulgação)

Você sente que isso pode inspirar outras pessoas de alguma forma?
Acho que é um acalanto, um carinho. No sentido que as pessoas podem olhar para mim e sentir que não estão sozinhas. Me vejo nesse lugar de entregar possibilidade de um aconchego e de dizer que essas pessoas não estão só e que não são as únicas que estão passando por isso. Eu também passei por muitas questões e é bom dizer para que os outros se sintam acolhides. A gente, enquanto figura pública, pode acolher pessoas ao dizer que já passamos pelas mesmas situações que elas já estão passando. 

Em um contexto de luta LGBTQIA+, a letra B acaba recebendo pouca visibilidade e sofre apagamento. Que caminhos a mídia e o ativismo podem adotar para que isso pare de acontecer?
Tem uma coisa muito bonita acontecendo que é falar sobre isso sem tabu e sem medo. É um movimento em resposta à resistência reacionária que está rolando no país. Acho que a comunicação, o audiovisual e o entretenimento são ferramentas importantíssimas nesse sentido. Fico feliz de estar nesse lugar como artista e comunicadora falando abertamente sobre o assunto. O que precisa acontecer é reforçar o diálogo, a honestidade, dar visibilidade para essas temáticas e trazer uma naturalidade para essas existências. Eu existo e não sou uma aberração, sou um ser humano como qualquer outro – é esse o recado que temos que levar para as pessoas. 

Você já comentou que o pole dance foi algo muito empoderador. De que forma a atividade transformou sua relação com seu corpo?
A pandemia foi um período em que fiquei muito em casa. Voltar para a sociedade e poder mostrar meu corpo – e um corpo que se transformou durante esse ano recluso – foi uma relação muito positiva no sentido de poder me reencontrar como mulher. O pole dance traz um lugar de feminilidade e sexualidade que é muito bonito. Também trouxe a possibilidade de eu me enxergar como uma pessoa sensual, bonita e forte. 

O corpo da mulher asiática é muito fetichizado na cultura ocidental. Você é uma figura pública e seu corpo é também sua ferramenta de trabalho. Você já vivenciou alguma situação do tipo?
Sim, muito! Esse processo de hiperssexualização do corpo da mulher asiática é fruto dessa lógica racista e da indústria pornográfica. Já ouvi coisas horríveis do tipo um cara querer me elogiar falando “nossa, você é igual a menina do pornô que eu assisto”, é um absurdo. Essa objetificação está no processo de racismo porque ele é um processo de desumanização e ausência de individualidade dos corpos não brancos. Ainda assim, sinto que, por eu estar construindo a minha identidade como Ana Hikari, as pessoas começam a me enxergar mais enquanto indivíduo e menos como indivíduo racializado. Meu objetivo é que, com a minha individualização, eu possa levantar essa discussão e fazer com que as pessoas enxerguem outras pessoas amarelas dessa forma também. 

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