Consciência, leveza e luta são algumas palavras que definem Chico César. O cantor, que já escreveu um hino à mulher negra e mãe solo que resiste todos os dias, é uma peça importante da cultura brasileira por refletir em suas canções a pluralidade de vivências e ritmos – criando, assim, parte da identidade nacional.
No fim do ano passado, o artista lançou Vestido de Amor, seu décimo álbum de estúdio e o primeiro concebido fora do Brasil. O convite partiu da gravadora Zamora, que tem sede em Paris. A ideia era fazer um disco com músicos de diferentes nacionalidades que vivem na Europa. Daí surgiu a parceria com o produtor franco-belga Jean Lamoot e a contribuição de Salif Keita e Ray Lema, dois grandes nomes da música africana. O mandingo kora fica por conta de Sekou Kouyaté e o baixo percussivo é do camaronês Etienne Mbappe.
Como resultado, o músico entrega um trabalho com múltiplos tons: do forró do norte brasileiro ao reggae jamaicano, da rumba zairense para o calypso, do coco ao elétrico rock urbano. As 11 faixas elaboram uma narrativa franca e lúdica que está presente desde seu primeiro lançamento, “Aos vivos” (1995). O tema do pan-africanismo desta vez é abordado do ponto de vista da diáspora.
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A ideia aqui é ressaltar a afirmação de um mundo mestiço onde a dança, a luta e o amor coexistem. Chico, que foi Secretário de Cultura do Estado da Paraíba em 2011, não deixa a política de fora. Em “Bolsominions”, ele narra como o bolsonarismo dissemina ódio pelas minorias e por quem discorda de seus valores. “Acredito que a ira cívica e cidadã é um ato de amor na luta contra o fascismo. O movimento Antifa, que vai para a rua enfrentar no corpo a corpo o fascismo é um ato de amor. A autodefesa dos povos indígenas, das mulheres, dos estudantes também é um ato de amor. Nós não podemos confundir o amor com a passividade. Ele é um ato revolucionário”, afirma à Elástica.
Para 2023, há três lançamentos programados: um álbum gravado no Uruguai, um disco com Zeca Baleiro feito com parcerias inéditas e outro composto por músicas sobre a pandemia. Abaixo, veja o papo completo:
Algumas de suas canções, como “Estado de Poesia” e “Mama África”, são atemporais e conquistam fãs de tempos em tempos. Sua ideia sempre foi criar músicas para todos os públicos?
Sempre achei que a minha música era para um grupo pequeno de pessoas. Felizmente, errei feio e ela se tornou muito popular. Quando comecei, achava que meu público seria universitário mas, na verdade, os primeiros shows que fiz – num lugar chamado Bambu Brasil – foram ocupados por estudantes secundaristas da cidade de São Paulo. Depois, achei a canção Beiradeiro, que é super pessoal, não seria gravada por mais ninguém. Mas ela já ganhou versões com intérpretes como Zizi Possi, Mônica Salmaso e Elba Ramalho. Nunca desejei que minha música falasse com todo mundo, mas felizmente algumas delas conseguem.
Já Deus me proteja, que Juliette cantou por acaso no BBB, passou a ser um sucesso agora. O lançamento foi em 2008 e, de repente, voltou e se tornou um hit – foi uma das músicas mais tocadas depois do reality. Ela entrou num contexto muito sincero e legítimo. E fico pensando: será que se os meios de comunicação tivessem aceitado tocá-la quando lancei com Dominguinhos, ela também teria viralizado? Essa é uma música de forró com sanfona e, naquela época, havia preconceito contra isso. Mas a primeira coisa que pega no povo em relação a minha música é a melodia, senão ela não teria emplacado em países não lusófonos, como Alemanha, Inglaterra, Canadá, Turquia e Japão. É ela que chama pessoas e faz com que cada canção se instale na vida de cada um.
Você foi um dos nomes cotados para assumir o Ministério da Cultura, mas afirmou nas redes que nunca cogitou. Qual é sua expectativa para essa nova fase da cultura brasileira?
Tive uma experiência maravilhosa como gestor de cultura no meu estado, Paraíba, de 2009 até o final de 2014. Os dois primeiros anos foram à frente da Fundação de Cultura de João Pessoa e os quatro últimos foram criando e fazendo funcionar a Secretaria Estadual de Cultura. Gostei muito de fazer isso, mas agora não era o momento de tentar outra vez. Durante a pandemia, produzi muito e acabei de lançar o Vestido de Amor. Também tenho um disco para ser lançado que foi gravado no Uruguai com dois parceiros argentinos, estou terminando gravações com Zeca Baleiro junto de parcerias inéditas e também tenho um álbum só com músicas sobre a pandemia. Uma pessoa que está lançando quatro discos não tem tempo para pensar em gestão.
Margareth Menezes já está dando conta de fazer um trabalho maravilhoso porque agora estamos vivendo o renascimento da república brasileira. Isso porque ela foi praticamente destruída nos últimos seis anos. Agora, penso que é hora de valorizar os saberes tradicionais e pensar a cultura para além do entretenimento – que é algo que Gilberto Gil e Juca Ferreira nos ensinaram quando foram ministros do governo Lula. É preciso valorizar a cultura dos quilombolas e dos indígenas. Se nós fizéssemos isso, os Yanomamis não estariam morrendo pelo garimpo ilegal. É preciso trazer as armas da cultura contra a cultura das armas. E essa cultura de paz precisa passar pelo julgamento e pela punição por todos que conspiraram contra a democracia e a diversidade.
É preciso trazer as armas da cultura contra a cultura das armas. E essa cultura de paz precisa passar pelo julgamento e pela punição por todos que conspiraram contra a democracia e a diversidade.
Chico César
Logo no início do ano vimos ataques a obras de arte e monumentos históricos que abrigam parte da identidade do país. Para você, falta uma noção de valorização da cultura pelos brasileiros?
Esse ataque vil contra os três poderes da nação vem sendo ensaiado, financiado e estimulado nas ruas e nas redes sociais durante os últimos anos. Ter uma agressão, inclusive oficial, a artistas do nível de Fernanda Montenegro, de Chico Buarque e, mais recentemente, Gilberto Gil, mostra uma estratégia contra o conhecimento, a arte e a ciência. Tivemos um secretário de cultura que chamou Fernanda Montenegro de bruxa, é um absurdo. E isso se concretiza agora quando a boiada passa pela polícia de Brasília, que faz a sua escolta para destruir de modo agressivo algumas imagens e obras importantíssimas da história do país.
Essa parcela de pessoas não representa o povo. Felizmente os poderes têm sido firmes, assim como a nação. É preciso separar, inclusive, os conservadores, religiosos e cristão dessa orla destrutiva – e trazê-los para junto do Brasil a fim de realizar uma reconstrução.
Seu último álbum, “Vestido de amor”, foi gravado na França, mistura sonoridades e fala de temas como fascismo, liberdade e a leveza de amar. Você acredita que é possível combater a intolerância com amor?
Acredito que a ira cívica e cidadã é um ato de amor na luta contra o fascismo. O movimento Antifa, que vai para a rua enfrentar no corpo a corpo o fascismo é um ato de amor. A autodefesa dos povos indígenas, das mulheres, dos estudantes também é um ato de amor. Nós não podemos confundir o amor com a passividade. Ele é um ato revolucionário.
Meu disco traz o amor como essa armadura que nos protege e nos fortalece para a luta. Isso é algo internacional, não é à toa que esse disco foi gravado e lançado na França. Essa intolerância cresce e se espalha pelo mundo – criando vínculos entre as nações. É justamente por isso que também precisamos juntar os nossos para defender a pluralidade de gênero, de credo, de diversidade, etc. Além disso, o disco também é, de modo mais íntimo, uma redescoberta do amor à própria vida. Por isso eu canto Na flor do figo: de novo algo aconteceu comigo – me coloco em disponibilidade para o que der e vier e para esse novo que existe o tempo inteiro.
Você participa do carnaval deste ano com o bloco “Estado de Folia”. Após anos com a festa limitada e com tantas mudanças no país, esse é um momento de renovação e de esperança?
O Carnaval é uma festa urbana, de rua, me alegra muito ter o Estado de Folia com um bloco e um trio elétrico na cidade de São Paulo, que foi desconsiderada por muito tempo como uma cidade de diversão de rua. Há uma larga tradição do samba e Carnaval. Acontece que o lugar ficou marcado pelo trabalho: o dia é para trabalhar e a noite é de diversão.
Porém, nos últimos 10 anos, o paulistano foi tendo a opção de não precisar sair do estado para se divertir e ainda começou a atrair pessoas de fora para participar da folia – esse é um movimento muito bonito. O carnaval de São Paulo é um dos maiores do país, com a diversidade de blocos para todas as idades. Quando criança, já vendi serpentina, confetes e talco para as pessoas jogarem umas nas outras durante a festa. Também já puxei trio elétrico em João Pessoa e cantei na Bahia e em Recife. Esse é um momento de diversão e alegria, só quero que esse reencontro seja muito maravilhoso. Ressalto que a pandemia está mais controlada por conta da ciência e das vacinas – e é só por isso que conseguimos celebrar e ter esperança.