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Luíza Fazio acredita que o audiovisual brasileiro tem medo de arriscar

Conversamos com a roteirista de "Sintonia" e "Cidade Invisível" sobre cinema, protagonismo das minorias e como criar uma série de sucesso

por Beatriz Lourenço Atualizado em 9 Maio 2022, 11h43 - Publicado em 8 Maio 2022 21h38
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(Clube Lambada/Ilustração)

ma pesquisa da Universidade Estadual de San Diego, publicada em 2020, mostrou que ainda há poucas mulheres por trás das câmeras. Elas representam apenas 16% dos diretores e 12% dos roteiristas dentro dos 100 filmes mais rentáveis dos últimos anos. E é para aumentar esse número que Luíza Fazio entrou para o audiovisual. Na verdade, o cinema é uma paixão antiga. O romance começou ainda criança, quando ela, sua mãe e sua tia alugavam filmes na locadora e passavam a madrugada mergulhadas em histórias da Hollywood antiga. 

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Conforme foi crescendo, as narrativas que a distraíam também fizeram com que ela se sentisse confortável com sua sexualidade. Após se tornar roteirista, Luiza conta que é esse sentimento que quer transmitir com seu trabalho. “Um dos meus filmes favoritos é The Rocky Horror Picture Show, um filme dos anos 1970 que bebe muito na água dos filmes de terror B dos anos 1920 e 1930. É musical e LGBT, tudo o que eu amo em uma coisa só”, conta à Elástica. “Assisti em uma época em que estava super confusa com a minha sexualidade e sobre quem eu era. Mas ele fala muito sobre ser você mesmo e viver sua estranheza – e isso fazia eu me sentir em casa.”

Luíza escreveu os sucessos da Netflix Cidade Invisível e Sintonia, que têm em comum elementos marcantes da cultura brasileira. Segundo ela, temos um imaginário coletivo muito forte enquanto brasileiros, mas pouco disso é representado nas telas. “O folclore, por exemplo, ainda era algo muito restrito a animações infantis, sendo que são histórias de origem indígena e com um conteúdo que trata de temas muito sérios”, afirma. “A festa junina, o Carnaval e a fundação do país também dariam histórias incríveis e não são exploradas.”

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(Liel Marín/Fotografia)

“Quando tivermos a possibilidade de fazer uma série com protagonistas lésbicas, ela não pode dar errado porque não teremos essa chance de novo – é isso que as minorias enfrentam. São muitos riscos envolvidos, mas se a gente não enfrentá-los, não há avanços”

Outro narrativa que a profissional sente falta é a de protagonistas lésbicas. De fato, uma pesquisa realizada em 2018 pela Universidade do Sul da Califórnia constatou que apenas 32 personagens com fala ou nome foram identificados como lésbicas, gays, bissexuais ou transexuais nos cem filmes mais vistos daquele ano. Nenhum deles era protagonista e a maioria eram homens gays (19). “No Brasil, as novelas estão um pouco melhores nesse quesito porque há muitos núcleos e tempo para trabalhar os personagens. Temos público para isso, só que ainda há medo de arriscar e falta ousadia”, reflete. “Quando tivermos a possibilidade de fazer uma série com protagonistas lésbicas, ela não pode dar errado porque não teremos essa chance de novo – é isso que as minorias enfrentam. São muitos riscos envolvidos, mas se a gente não enfrentá-los, não há avanços.” 

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SINTONIA
SINTONIA (Netflix/Sintonia/Reprodução)

Além da estreia da segunda temporada de Cidade Invisível, que acontece ainda em 2022, Luíza tem mais motivos para comemorar: ela foi escolhida para o International Writing Program (IWP), da Universidade de Iowa, a residência artística mais antiga do mundo, que acontece todos os anos desde 1967. É a única brasileira da turma e também a única desde 2015. Para ter uma ideia da importância dessa conquista, contamos aqui dois egressos brasileiros do IWP: Milton Hatoum e João Ubaldo Ribeiro. 

Diretamente de Iowa lá, a roteirista conversou conosco sobre diversidade, processo criativo e o que acontece nos bastidores de uma série que não sabemos.

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(Netflix/Divulgação)

Quando você se apaixonou pelo audiovisual?
Quando era criança, uma tia sempre me mostrava filmes diferentões e a gente tinha um ritual de ir na casa dela e ficar assistindo até de madrugada. Minha mãe também gosta muito de cinema e com ela eu via muitos filmes da Hollywood antiga, dos anos 1940 e 1950. Posso dizer que o audiovisual sempre esteve presente na minha vida, mas nunca tinha pensado em escrever filmes — até porque há 15 anos atrás isso era algo muito distante da realidade brasileira. Na adolescência, escrevia contos e publiquei um livro com 16 anos. E isso se refletiu quando escolhi jornalismo para cursar na faculdade. No fim do curso, escrevi um curta-metragem e amei! Foi aí que decidi seguir essa carreira. 

Depois de me especializar, consegui um trabalho na produtora LB. Minha primeira função foi como assistente de roteiro da série Samantha!, depois entrei no Sintonia e tudo começou a deslanchar. Recentemente, escrevi o roteiro da série Sentença, criada pela Paula Knudsen, que estreia em 15 de abril no Prime Video

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(Netflix/Divulgação)

Qual é o processo de produção de uma série e de um roteiro? O que acontece que nós, que estamos do outro lado da tela, não sabemos?
É um processo longo, complicado e que depende de muito recurso humano. Começa com uma ideia que vira um projeto que será apresentado para uma produtora. Quando ela aceita, tenta vender para um canal de streaming ou televisão. Se algum desses lugares gosta e investe, vamos para a primeira fase, quando escrevemos os primeiros episódios e o que chamamos de bíblia – textos longos sobre a sinopse dos episódios, o perfil dos personagens, o arco da temporada e ideias para o futuro. Quando tudo isso é aprovado, há a segunda fase, em que terminamos de escrever e fazemos a pré-produção, que é a contratação dos atores, locações, comida, motoristas, diretores e assistentes. Isso demora, mais ou menos, de seis meses a um ano. Aí gravamos, editamos e finalizamos. É por isso que as temporadas das séries que gostamos demoram para chegar.

No caso do roteiro, gosto de ir a campo e falar com pessoas do núcleo que vou trabalhar. Lembro que quando estávamos desenvolvendo a Rita, de Sintonia, estávamos com dificuldade de pensar no que ela fazia antes de entrar para a igreja. Aí fui acompanhar várias amigas que trabalhavam no metrô e percebi que a habilidade dela com a oralidade para se tornar pastora tem a ver com vendas. É possível fazer conexões no roteiro partindo de situações da vida real. 

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De que forma o cinema ajudou você a entender sua sexualidade?
Um dos meus filmes favoritos é The Rocky Horror Picture Show‘, uma produção dos anos 1970 que bebe muito na água dos filmes de terror B dos anos 1920 e 1930. É musical e LGBT, tudo o que eu amo em uma coisa só. Vi em uma época em que estava super confusa com a minha sexualidade e sobre quem eu era. Mas ele fala muito sobre ser você mesmo e viver sua estranheza, e isso fazia eu me sentir em casa em um momento que sempre me senti um pouco esquisita. Enxergar esses personagens foi muito fundamental. Eu gostava muito de filmes de romance, mas os casais hétero não me contemplavam. Já quando o casal era homossexual, eu sentia identificação e me encontrava num lugar de conforto.  

“Enxergar esses personagens [fora do padrão] foi fundamental. Eu gostava de filmes de romance, mas os casais hétero não me contemplavam. Já quando o casal era homossexual, eu sentia identificação e me encontrava num lugar de conforto”

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Sintonia e Cidade Invisível são séries que incluem elementos da cultura brasileira, como o folclore, o funk e a estética da periferia. Você acredita que as produções precisam valorizar mais nossa cultura? Falta explorar novas narrativas do que é o Brasil?
Acho que falta muito porque temos um imaginário coletivo muito forte enquanto brasileiros, mas pouquíssimo disso está representado no cinema. O folclore, por exemplo, ainda era algo muito restrito a animações infantis sendo que são histórias indígenas e com um conteúdo que trata de temas sérios. A festa junina, o Carnaval e a fundação do país também dariam histórias incríveis e não são exploradas. 

Os Estados Unidos fazem um trabalho muito legal com filmes de época, olhando para o passado com um viés da atualidade. Isso é bom porque precisamos de outros olhares sobre o que aconteceu, mas com uma narrativa contemporânea. Vemos muitas relações estruturais do passado hoje em dia. Se a gente estudar sobre o período escravocrata, percebemos que o quartinho dos fundos de casa remete a senzala e isso é importante de ser dito. Precisamos olhar para a história de uma forma mais crítica e intrigante. 

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(Netflix/Divulgação)

O audiovisual brasileiro ainda é majoritariamente masculino, branco e heterossexual. O que falta para termos mais diversidade nesse meio?
Isso tem a ver com sair da zona de conforto, das pessoas que estão nos cargos de chefia se abrirem para outras visões de mundo. Sabemos que esse olhar hétero, masculino e branco não é mais tido como universal. Mas as pessoas que estão na indústria há muito tempo estão acostumadas com essas histórias. No entanto, hoje temos uma demanda por narrativas diferentes e, para ter uma produção boa e com representatividade, é preciso ter uma equipe que corresponda. Quanto mais diversa for uma equipe de roteiro, melhor será o filme. Sinto que ainda falta coragem para arriscar. 

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Bridgerton, por exemplo, tem feito um super sucesso. É uma série de romance, mas os personagens não são. Na segunda temporada, a protagonista não é branca – e estamos falando de realeza inglesa – o que mostra que as pessoas estão muito abertas a mudar o que é tido como tradicional.

“Vemos muitas relações estruturais do passado hoje em dia. Se estudarmos o período escravocrata, percebemos que o quartinho dos fundos de casa remete a senzala e isso é importante de ser dito. Precisamos olhar para a história de uma forma mais crítica e intrigante” 

De que maneira você aborda temas como inclusão, sexualidade e gênero nos seus roteiros?
Gosto muito do que a Shonda Rhymes fala que é “não vou pensar em escrever um personagem homossexual, vou escrever pessoas”. E pessoas são gays, hétero, pretos, brancos, etc. É só colocar humanidade em cada um na hora de criar uma história. O que temos visto muito nos últimos anos é a tentativa de inclusão, mas quando vemos os personagens que não são brancos e héteros, percebemos que ninguém se preocupou em fazer deles um ser humano. A grande questão aqui é pensar em um personagem minoritário como você pensaria nos outros – com falhas e qualidades.

Se vejo um filme onde o personagem minoritário é apenas uma boa pessoa, concluo que os roteiristas ficaram com medo de colocar falhas e serem taxados como preconceituosos, ou simplesmente estavam com preguiça. 

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Em uma entrevista anterior, você falou que sente falta de ver filmes com protagonistas lésbicas. Como você percebe esse cenário no Brasil?
Uma pesquisa mostrou que a porcentagem de mulheres lésbicas nas séries era de apenas 3%. Além disso, elas são sempre secundárias. Então, podemos analisar que ainda faltam narrativas assim no Brasil. As novelas estão um pouco melhores nesse quesito porque há muitos núcleos e muito tempo para trabalhar os personagens. Temos público para isso, só que ainda há muito medo de arriscar e falta ousadia. 

É claro que terão séries que vão dar certo e, outras, errado. Penso muito no exemplo da Mulher Maravilha que, depois de muito tempo, foi um longa com uma protagonista mulher e dirigido por uma mulher. Se ele tivesse dado errado, ia fechar as portas para todas as diretoras por um bom tempo. Quando tivermos a possibilidade de fazer uma série com protagonistas lésbicas, ela não pode dar errado porque não teremos essa chance de novo – é por isso que as minorias passam. São muitos riscos envolvidos, mas se a gente não enfrentá-los, não há avanços.

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“Se vejo um filme onde o personagem minoritário é apenas uma boa pessoa, concluo que os roteiristas ficaram com medo de colocar falhas e serem taxados como preconceituosos, ou simplesmente estavam com preguiça”

Pegando esse gancho, você acredita que o cinema é político? Como ele pode mudar a realidade de um país como o Brasil?
É sim, mas ele também é sobre sonhos. Antes de “Sintonia”, os adolescentes da periferia de São Paulo nunca haviam sido representados nas telas. Depois que a série foi lançada, recebemos várias mensagens de pessoas que estavam muito emocionadas por se identificarem. É muito bonito quando elas sentem que têm suas experiências de vida validadas, acaba aumentando a autoestima de cada uma. O audiovisual tem esse poder de fazer com que as histórias individuais movam e mudem muitas pessoas. Você fazer alguém se sentir bem e, ao mesmo tempo, trazer à tona as questões sociais é muito importante. 

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