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Themonizar as artes

Vencedora de uma bolsa do IMS, a artista drag Rafael BQueer propõe distopias a fim de escancarar a realidade cruel da Amazônia e de todo o Brasil

por Artur Tavares Atualizado em 14 mar 2022, 15h02 - Publicado em 24 fev 2022 00h03
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(Clube Lambada/Ilustração)

ão é um dia comum no mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará. Em seus quase 400 anos de história, o entreposto comercial a céu aberto recebe uma intervenção artística feroz. O coletivo de artistas drags Thêmonias transita por entre as barracas enquanto têm sua performance registrada em vídeo. O filme, que registra olhares curiosos, admiradores, repulsivos, faz parte de uma série de filmes comissionados pelo Instituto Moreira Salles através da artista Rafael BQueer.

Nascida na capital paraense em 1992, drag desde os 16 anos, Rafael atua solo em outro filme profanando uma loja da Havan na cidade. Difícil dizer o que parece mais alienígena: a Estátua da Liberdade erguida em meio a um cenário tropical ou a artista coberta dos pés à cabeça de couro vermelho logo ao lado. Seu recado, no entanto, é bem claro: o símbolo não pertence àquele lugar.

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Integrante de uma bem-vinda cena artística drag amazônica que vem ganhando reconhecimento mundial, Rafael BQueer descobriu a urgência de questionar identidade e gênero quando trabalhava com o Carnaval paraense, ainda muito jovem. Levou sua pesquisa para a universidade e hoje, aos 30 anos, vem se projetando como grande nome da performance nacional. A bolsa que ganhou da importante instituição cultural é apenas mais um passo de seu reconhecimento.

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“Meu trabalho de fotografia tem um histórico de lidar com imagens distópicas e também uma coisa do contraste. O filme reúne isso com muita força. Sempre fico pensando, desde quando saí de Belém, e entrei nesse circuito de artes visuais, que Amazônia é essa?”, explica.

Hoje morando em São Paulo, depois de cinco anos vivendo no Rio de Janeiro, Rafael leva consigo aquilo que aprendeu com as Thêmonias. O coletivo existe há uma década e atua dentro das mais diversas vertentes artísticas, do teatro à moda, com uma proposta de abalar as estruturas vigentes. Suas drags não fazem referência às divas pop, embora a artista cite como suas maiores influências RuPaul e Jorge Lafond, a Vera Verão. Pelo contrário, são representações profanas, próprias para os tempos sombrios que enfrentamos.

Nessa conversa, Rafael fala sobre seu trabalho, sobre as Themônias, a nova cena artística drag que invadiu os museus e galerias de arte, e sobre a resistência de corpas pretas e indígenas no Norte do Brasil.

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(Caio Lírio/Fotografia)

Rafael, me conta um pouco da sua história. Você está se montando há oito anos, mas quando a drag virou seu objeto artístico de pesquisa?
Costumo dizer que eu já me montava antes de fazer drag. Sinto que esse lugar artístico da montação faz parte da minha vida, porque logo com 14 anos fui trabalhar em uma escola de samba, em Belém do Pará. O Carnaval é uma manifestação cultural popular que nos leva para esse estado de performance. Ali, já tinha um questionamento desse papel de gênero. Isso se transformou em questionamentos do que é arte, já que saí da cultura popular para a academia, para as artes visuais, para a Universidade Federal do Pará. Acredito que na virada dos anos 2010, o programa da RuPaul teve mais força no mundo, com a internet, o Instagram, o Facebook… essas informações, esses gifs, essas imagens vão tomando conta do nosso cotidiano, e é interessante pensar nisso, porque o Pará tem uma cena LGBTQIA+ muito forte.

Quando pensamos no Círio de Nazaré, que é uma procissão religiosa, católica, dentro do circuito de festejos católicos está uma grande festa profana, LGBTQIA+, que é a Festa da Chiquita. A gente cresce na Amazônia, em Belém, olhando para aquela festa, para aquela figura que deve ter quase 70 anos, o Elói Iglesias, uma artista também de Carnaval, de montação, da música. E sinto que o Pará tem uma trajetória que também está ali nos inspirando a pensar.

Então, é tudo isso. É uma conjuntura de muitas coisas. Não é só Ru Paul, mas também um estímulo local, e um desejo de várias amigas da faculdade de fazer uma festa chamada Noite Suja, em 2014, e nos convidar para participar. Mas não induzindo a nos montarmos de drags femininas. Ao contrário, a festa tinha até uma pegada totalmente clubber, trash, de filme de terror.

Nessa virada dos anos 2010 também tem uma coisa da Lady Gaga, dos little monsters, do Crepúsculo, do Harry Potter, uma coisa da ficção do monstro e da monstra que vai se colar num conceito de ser drag e demônia na Amazônia. Acho que o conceito de monstruosidade, que você vai ver em várias artistas drags brasileiras, vem desse cenário que a cultura pop estava oferecendo.

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“Nessa virada dos anos 2010 também tem uma coisa da Lady Gaga, dos little monsters, do Crepúsculo, do Harry Potter, uma coisa da ficção do monstro e da monstra que vai se colar num conceito de ser drag e demônia na Amazônia. Acho que o conceito de monstruosidade, que você vai ver em várias artistas drags brasileiras, vem desse cenário que a cultura pop estava oferecendo”

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(Paulo Evander Castro/Fotografia/Filme Hierogritos/Divulgação)

Notar o pop como influência é interessante porque desde os anos 1980 as drags giram em torno do pop e do questionamento de gênero, e agora estamos vendo a drag indo para ambientes acadêmicos, para as bienais de arte. Quando a drag se torna um objeto de estudo formal?
Depende do ponto de vista. Gosto de vir da performance, que é essa prima jovem da arte contemporânea, que não é uma pesquisa de pensamento tradicional, clássico. Ela nasce como uma linguagem híbrida, um encontro do teatro com a dança, com as artes plásticas, com o vídeo e a experimentação. Vivemos cada vez mais a expansão desses conceitos, que não cabem mais em pequenos rótulos. Acho que a arte drag sempre foi arte, uma arte essencialmente de questionamento de gênero, que vai lidar diretamente com o teatro. Muitas amigas drags são atrizes ou atores.

Acredito que, quando entramos nesse núcleo mais elitista das artes plásticas contemporâneas, existe sempre uma relação de poder…. Quando trabalhamos com temas dissidentes, como as questões raciais, de gênero ou periféricas, infelizmente a universidade e a prática museal são muito elitistas, muito segregadoras. A Semana de Arte Moderna de 1922 é um grande exemplo. Quem são os modernistas? Brancos, herdeiros, que estudaram na Europa, que estão nesse diálogo europeu. São apropriadores, que falam da cultura indígena mas não lutam pela presença e pelo lugar de fala indígenas. Qual é essa arte que o Brasil vem fazendo nos últimos 100 anos? É de fato com presenças pretas, indígenas, travestis, trans?

Sinto que muitos desses debates sobre gênero sempre existiram em um campo marginalizado, seja no período da Ditadura Militar, sejam os concursos de transformistas do programa do Silvio Santos. Está tudo existindo, sempre existiram artistas trans e a cena drag. Ou, como diziam as mais velhas, shows de travestis. Ou, ao mesmo tempo, corpas não-binárias… As pessoas tentam fazer parecer que esse é um debate recente, mas existe há muito tempo, só que hoje são outros tipos de discurso, de linguagem.

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Também temos esse processo colonial que vem dos Estados Unidos… tenho lido muito sobre isso. Quando estudamos o movimento LGBTQIA+ no Brasil, vemos reflexos da Revolta de Stonewall, dos Panteras Negras, de tudo que vem dos anos 1960 para cá, seja RuPaul, a cultura clubber, tudo é muito estadunidense, de fato. E não tem como falar sobre drags sem falar sobre moda. Então, estamos sempre nesses entornos coloniais para conseguirmos nos ver, nos impor, nesse espaço que é super burguês e super elitista. Nós, que ainda somos poucas artistas pretas e da Amazônia, estamos tentando transformar esses espaços em lugares menos caretas, menos conservadores.

Por isso, acho que o tema drag nas artes não é uma novidade, acho que já foi debatido pela fotografia e pela performance, mas no país bolsonarista que vivemos hoje, ainda é um questionamento. Sobretudo nesse cenário atual que temos, de discussão de inclusão de mulheres cis, de homens e mulheres trans, de pessoas fora do eixo Sul/Sudeste, ainda mais agora que temos uma artista como Uýra Sodoma na capa da Vogue, estamos debatendo não só a drag, mas a pluralidade de gêneros.

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(Paulo Evander Castro/Fotografia/Filme Hierogritos/Reprodução)

Acho que a diferença está em… eu cresci vendo Jorge Lafond na televisão, e a mim parece que ele se conformou, jogou o jogo, enquanto hoje em dia ninguém mais é conivente com o conservadorismo, está aqui pra questionar. E, aí vemos essa resposta de que não se pode mais fazer piada, não pode retratar. Daqui a pouco alguém vai se questionar porque não podemos fazer blackface…
Sim, mas acho que nada disso é uma novidade, não é algo que surge da noite para o dia. O Brasil tem sérios problemas com questões de direitos humanos, com questões de intolerância, é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. É um país que teve anistia da Ditadura Militar. Tem vários casos, documentários que mostram uma fuga de nazistas para o Brasil, e mesmo assim o Brasil vende uma imagem internacional de samba, Carnaval, futebol. Essas figuras conservadoras existem em um histórico do país.

Mas, gosto de ver também para além de uma repaginação da cultura drag estadunidense. O Brasil construiu e constrói cotidianamente suas linguagens. Gosto do termo “transformista”. Não é mais tão usado, mas é um termo que sobrevive bem à passagem do tempo, essa forma de traduzir para o português, esse cabo de guerra… há uma década falávamos de globalização, e nem se fala mais tanto disso, é um fato. Ao mesmo tempo, é legal ver mulheres travestis e trans estarem dentro desse circuito de boates. Hoje, moro em São Paulo, e tenho pesquisado muito a cena LGBTQIA+ noturna, e existem muitas artistas travestis na cena drag.

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Tem uma coisa meio equivocada de entender que as inspirações das drags são só as divas mulheres cis, como a Cher e a Madonna. Sempre houveram artistas trans e travestis. Acho importante não cair nesse apagamento.

A Jorge Lafond é uma das maiores referências da minha existência, do meu trabalho. Porque fui uma bicha preta do Pará que cresceu assistindo A Praça É Nossa, porque tenho uma relação fortíssima com escola de samba, e a Jorge Lafond era destaque dos carros alegóricos. Hoje, sou destaque do abre-alas da Grande Rio. Ao mesmo tempo que não sou mais carnavalesca, como fui, preservo esse lugar da performance. A Lafond é minha referência de tudo isso, ela era andrógina, era modelo, atriz, e tudo isso tentando lidar com o cenário do racismo, da chacota, e acho que muito inteligentemente. Porque, quando você puxa umas entrevistas dela dos anos 1990, vê que ela era bem rebelde. Para além daquela personagem que parecia ser caricata, havia alguns posicionamentos públicos que tinham seu lugar de questionamento.

O próprio bordão “bicha não, sou quase mulher” é muito emblemático. Se você para pra pensar o que é o preconceito de gênero… Se olhamos o Big Brother hoje e vemos a Linn sendo chamada de “ele”… Reafirmar o Lafond, a Lafond, é necessário…
Total. Não só ela. Porque sempre vamos acabar caindo nesse lugar da visibilidade. Quem são as figuras pelas quais temos mais memórias? Jorge Lafond, Madame Satã. Minha pesquisa, para além do meu trabalho com o coletivo das Themônias, que são muitas pessoas diferentes, é sobre essa intersecção sobre raça e gênero. Estou sempre tentando resgatar o apagamento, e olhar a cena de artistas pretas, não-binárias. Tem tantas artistas incivilizadas nesse meio. Não podemos esquecer as Dzi Croquetes, a Paulete, que era uma super bailarina.

E também na questão histórica, vejo essa questão do artigo. “O” Madame Satã. Os jornais escrevem tudo no masculino, e fico sempre pensando nisso, de quantas dessas manas nem tiveram essa possibilidade de questionar esse próprio lugar do masculino. Sempre que escrevo sobre a Madame Satã e as aparições delas em corpos de bichas pretas no Carnaval da Sapucaí… porque é muito interessante que muitas bichas pretas em algum momento performam Madame Satã, por ser uma figura do imaginário do Rio, da Lapa… então sempre escrevo “a” Madame Satã, que é uma forma de tensionar esse papel que, para nós dessa bolha de pesquisa, já não faz sentido há muito tempo. Estamos em um lugar muito fluido, mas ainda assim as pessoas tentam buscar o enquadramento para que elas se sintam confortáveis. Nunca é para que nós possamos nos sentir confortáveis.

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(Paulo Evander Castro/Fotografia/Filme Hierogritos/Divulgação)

Isso é muito interessante, porque eu mesmo falei “o” Jorge Lafond, e isso está na minha cabeça pois sempre vi outros se referindo a ela assim, porque ela morreu antes de toda essa discussão de gênero. Essas pessoas não tiveram o direito de se defenderem dessa masculinização, não estávamos nesse debate.
Hoje, acho que a grande diferença mesmo é o meio acadêmico. Não só na minha vida como das minhas amigas em Belém do Pará. Hoje, a maioria das artistas das Themônias são pessoas da academia, e que estão pesquisando há dez anos o que é teoria queer, ao mesmo tempo que se entendendo nesse lugar eurocêntrico que é o meio acadêmico, e tentando contextualizar para o Brasil.

Quando brinco com o termo “queer” para o sobrenome artístico, é totalmente irônico, é um deboche, porque é uma teoria estrangeira sobre gênero, que é sobre corpas brancas, mas que não engloba América Latina ou corpas pretas. E, como é falar de teoria queer desse lugar de bicha preta latina? Acho que, na academia, temos conseguido montar outras estratégias de tensionar esses lugares de subjetividade. Porque quando falamos desse lugar do artigo, ou da linguagem neutra, que é um termo que nem gosto, prefiro falar em linguagem não-binária, é falar sobre subjetividade também, de como você se vê diante do mundo.

“Estamos em um lugar muito fluido, mas ainda assim as pessoas tentam buscar o enquadramento para que elas se sintam confortáveis. Nunca é para que nós possamos nos sentir confortáveis”

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(Paulo Evander Castro/Fotografia/Filme Hierogritos/Divulgação)

O coletivo se chama Themônias. O nome é uma referência ao pronome em inglês “them”, bastante usado na língua inglesa para indefinir gênero? É uma ironia, globalizar um coletivo amazônico, sendo que a cena amazônica é bastante relegada na cultura brasileira – considerada, por falta de palavra melhor, marginalizada além do centro-sul nacional?
Tudo sempre vai ter um deboche, uma ironia. Acho que a comunidade LGBTQIA+ sempre vive um pouco na ambiguidade, seja em estratégias contra a violência… o pajubá é uma linguagem de guerra, de guerrilha, que existe há décadas. É preciso que haja também esse lugar de linguagem.

E, acho muito curioso quando volto a analisar essa influência dos Estados Unidos, mas tudo que fazemos aqui é automaticamente outra coisa, seja nesse território que é a América Latina, ou o nosso território que é a Amazônia. É por sermos desse território que entendemos que nunca… que não somos drags. Porque nosso clima, os nossos materiais, são tão estranhos ao que Hollywood ou o programa da RuPaul exportam, que surgem as brincadeiras. “Mana, você tá uma demônia!”, porque é isso, né? Tá todo mundo derretendo naquele calor amazônico.

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Acho que o voguing, os ballrooms… Claro que Pose trouxe de volta a cena ballroom. Estive em Manaus no ano passado e lá você tem houses de vouging. No Rio de Janeiro, no Brasil inteiro você tem a cena acontecendo. Embora Pose tenha trazido esse grande boom, RuPaul já colocava ali temas como os runaways. No próprio filme que produzi, nós tentamos lidar com essa globalização, com esses signos imperialistas, ao mesmo tempo que nada é mais marcante que as corpas. Minha corpa tem uma identidade preta indígena amazônica que está impressa no meu rosto. Meus olhos são puxados, meu tom de pele… Quando falamos de questões raciais, vemos uma pessoa preta da Amazônia diferente de uma pessoa preta da Bahia, ou do Sudeste. E aí vamos tentando trabalhar também com questões identitárias que existem em um país que é continental.

Um dos filmes produzidos para o IMS, Torre de Babildre, apresenta uma performance em frente de uma loja da Havan, com a tradicional estátua da liberdade da marca, no meio de uma paisagem inóspita, tropical, muito diferente da Ilha de Manhattan… Eu penso São Paulo como um espaço totalmente colonizado, que não tem mais identidade própria, ou nunca teve, porque somos produto do baronato de café, da exportação para a Europa… A mim, soa como se a Amazônia seja a última fronteira de salvação da cultura brasileira. Como é estar ali pensando nesse ser global dançando na frente de uma Havan?
Meu trabalho de fotografia tem um histórico de lidar com imagens distópicas, uma questão da distopia muito forte, e também uma coisa do contraste. O filme reúne isso com muita força. Sempre fico pensando, desde quando saí de Belém, e entrei nesse circuito de artes visuais, que Amazônia é essa? Porque existe a Amazônia que o mundo da moda vende, a Amazônia que o mundo do jornalismo vende, o que a arte contemporânea da Amazônia produz. E, volto a dizer, muitas dessas pessoas do circuito de arte contemporânea local não são pessoas da periferia, ou pretas, ou indígenas. E, existe nesse circuito, o lugar do comercial, do mercadológico, de vender um discurso, uma imagem. Então, não só não me enxergava naquela produção, como sentia essas ausências de gênero e raça. E fico pensando como posso contribuir para essa região. O que se produz lá que o Brasil ou o mundo não conhecem?

Embora a gente viva nesse mundo globalizado – porque no Instagram as drags de todo o Brasil se conhecem, porque uma drag carioca consegue acompanhar uma Uýra Sodoma, que é uma grande artista que mora na periferia de Manaus –, no circuito de arte brasileira ainda é estranho termos materiais com materialidade e performatividade drags nos espaços canônicos.

Talvez aqui em São Paulo seja mais natural a ponte entre esses universos, mas em Belém do Pará não é. Então, quando pensei nos lugares, não era apenas para trazer uma contextualização, e sim para afrontar os espaços canônicos locais da Amazônia. O que é a Amazônia hoje para mim, e o que são esses cenários onde as Themônias crescem? É o cenário de precarização, de falta de apoio para a cultura, de destruição da floresta, de extermínio dos povos indígenas. E você cresce na região assistindo o jornal do meio dia vendo essas cenas diariamente. Ao mesmo tempo, sempre o discurso do abandono, da ausência. Não nos vemos nas novelas, não nos vemos nos filmes.

Existe uma invisibilização, um apagamento da nossa existência. Mas, ao mesmo tempo, é no meio desse apagamento, desse lugar que não é visado pelas mídias nacionais, que vão surgir artistas diferentes do que a cena do Sudeste produz. E são artistas que têm um entendimento de que ser “thêmonia” não é só estar em um lugar precário, e sim um lugar de afirmação de ser uma estranha em um país que coloca a gente como estranho, um país cristão, um país que não dá apoio financeiro para existirmos para além desses lugares.

É muito parecido com a teoria queer, que surge como um termo de insulto. O que é mais insulto do que ser demônio? E transformamos em “thêmonias”, somos demônias, sim, e vamos assustar a sua vida, vamos invadir o seu mundo e vamos demonizar. Tornou-se um termo. Eu vou demonizar a cena drag, e como cada thêmonia vem de um espaço artístico, uma vai montar um espaço de dança, outra mana é estilista, e sempre uma vai convidar as outras para demonizar seus espaços.

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(David Pacheco/Fotografia)

Por falar nesse isolamento da cultura amazônica, a última Bienal de São Paulo se orgulhou de ter o maior número de artistas indígenas e amazônicos desde sua fundação, há 70 anos. Mas, ter apenas 13 artistas, e pelo que me lembro, apenas a Uýra apresentou trabalhos que não são etnográficos. Estamos preparados para entender o que é arte amazônica de verdade, ou ainda continuamos no espaço da colonização?
A Amazônia é tudo isso, né? São as amazônias, como costumamos falar. Sou suspeita para falar do trabalho da Uýra. Ela vem, há anos, tendo um crescimento no trabalho dela. Uma coisa que acho muito bonita é que ela ainda mora em território amazônico. E, mesmo morando na periferia de Manaus, ela consegue mobilizar-se internacionalmente, não apenas a Bienal de São Paulo. Ela foi fazer trabalhos na Áustria, está viajando o mundo com um discurso que consegue criar um olhar que contextualiza a cena drag na Amazônia, de transformar isso em um material didático como professora de crianças ribeirinhas, que moram em palafitas, em regiões muito distantes da capital. Quando fiquei na casa de Uýra, em Manaus, vi como ali 12 horas de barco é uma viagem que nem te leva aos lugares mais distantes do estado. Não é como pegar um ônibus Rio/São Paulo. A Amazônia é um lugar que tem um outro tempo, com outras visualidades. A Uýra realmente me emociona não somente por ser uma figura incrível como artista, mas como pessoa, e sinto que aprendi com ela tantas coisas, principalmente esse lugar da retomada, também.

Se apagaram nossa identidade indígena, então estamos em retomada. É reivindicar e lutar contra esse apagamento, porque a colonização fez isso, até hoje embranquecendo corpas indígenas e pretas. E, ao mesmo tempo, temos que nos desdobrar no contrafluxo, de tentar entender porque nas nossas famílias, muitas vezes, os parentes indígenas não são lembrados. Porque a colonização portuguesa fez com que o importasse fosse a Europa, fosse Portugal. E isso é muito violento até hoje para a cena da Amazônia, principalmente quando vemos o enorme número de igrejas neo-pentecostais em lugares ribeirinhos, em cima da água, em povoados pequenos.

“Minha corpa tem uma identidade preta indígena amazônica que está impressa no meu rosto. Meus olhos são puxados, meu tom de pele… Quando falamos de questões raciais, vemos uma pessoa preta da Amazônia diferente de uma pessoa preta da Bahia, ou do Sudeste. E aí vamos tentando trabalhar também com questões identitárias que existem em um país que é continental”

Sobre a Bienal de São Paulo, ainda estamos muito longe de ter igualdade. Igualdade, para mim, é quando tiverem diretoras indígenas, curadoras indígenas, sabe? Não é só você estar em uma instituição sendo uma artista preta e indígena da Amazônia. Cadê? O curador é um homem branco, o diretor é um homem branco, a empresa tem dinheiro de bancos europeus. E aí? Como você dobra um olhar colonial em cima disso. É claro que é importante estarmos nesse ritmo de ocupar espaços que há 100 anos atrás falavam de antropofagia sem as presenças indígenas – que ainda estão ausentes, mas menos. Então, acho que ainda precisamos reivindicar esses espaços, porque cada vez mais vemos que esse conceito de representatividade é excludente, porque 13 pessoas não vão representar milhares.

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(Paulo Evander Castro/Fotografia/Filme Hierogritos/Divulgação)

A própria ayahuasca na Amazônia é neopentecostal…
Nossa, eu fico apavorada quando vejo isso. O embranquecimento, a apropriação… isso se reflete no cenário político atual do Brasil, que mostra sua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim. E o Brasil é conservador pra caramba, sabe? Por isso que, no meu lugar de artista, existe sim um lugar político desse trabalho que fazemos hoje. Eu já estive também fora do Brasil estudando, e você vê como os outros países latinos nos enxergam. O Brasil vendia uma imagem de camarada, o Carnaval fazia isso, e agora não mais. O cenário político de hoje mostrou que o país tem uma onda conservadora muito forte.

A apropriação cultural, o embranquecimento e o esvaziamento dos sentidos no nosso território amazônico torna ali um lugar de muita luta para que mantenhamos não só as corpas vivas, mas a cultura viva nas suas identidades da música, da culinária… Em São Paulo não vejo esse encontro da culinária com os indígenas, como é no Pará. Lá, existe a relação com o tucupi, com a maniçoba, com o jambu, e isso está na música da Dona Onete, no carimbó. Isso é um lugar sobre existências indígenas. Acho que São Paulo, agora, revendo os monumentos que prestam homenagens aos bandeirantes, está botando em xeque também esse extermínio indígena, e também na periferia com a comunidade preta.

Voltando para o início do nosso papo, quando você falou sobre a presença LGBTQIA+ em Belém… eu estive por lá em 2008 cobrindo o festival Se Rasgum, e de fato havia mesmo uma população LGBTQIA+ muito forte, mas não vi esses corpos trans e travestis nas aparelhagens, no brega, no carimbó. Como estão as coisas hoje?
Na minha vivência dentro do Brasil, e na minha pesquisa sobre gênero e sexualidade, considero Belém do Pará uma das cidades mais fortes de fomento e entendimento de gênero na arte. Se você levar em consideração a proporção da cidade… Belém é uma cidade com quase 3 milhões de habitantes. Acho que o movimento das Thêmonias tem uma quantidade tão grande de pessoas que é difícil comparar com outras cidades do Norte e Nordeste, ainda que exista o coletivo das Monstras, na Bahia, e uma cena fortíssima no Crato e no Cariri, no interior do Ceará.

Já Belém, por exemplo, tem uma cena de cultura popular fortíssima. O São João Paraense há décadas tem um concurso que hoje se chama Miss Caipira Mix, mas que antigamente era o Miss Caipira Gay. Esses concursos de São João, que são uma herança muito forte do Nordeste, têm a periferia se apresentando. São muitas manas trans e travestis, mas, é cultura popular, acaba entrando nessa hierarquização acadêmica, infelizmente.

A própria festa da Chiquita, que completa 44 anos em 2002, é mais antiga que qualquer Parada LGBTQIA+ do Brasil. É um puta lugar de resistência, porque a dinâmica do Círio de Nazaré é a seguinte: a imagem de Nossa Senhora vai sair de uma igreja e ir até a outra, de noite. Quando a santa chega na igreja às 22h, 23h, com uma procissão de até um milhão de pessoas, a Elói vai comandar a Chiquita, realizando shows performáticos… e há décadas! Isso mostra como o Pará é um lugar de luta LGBTQIA+. Porque nada vem de graça, tudo isso vem na base da resistência. Você tem inúmeras questões ali que mostram como a cena é muito forte. As próprias manas mais antigas podem falar da cena transformista dos anos 1980 e 1990. Mas houve a questão do HIV nas comunidades, como isso afetou a cena noturna dos anos 1990, como isso é revisto nos anos 2000.

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