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Bela Gil bate de frente com ideais conservadores

Conversamos com a chef e ativista sobre política, alimentação e relacionamentos não monogâmicos

por Beatriz Lourenço Atualizado em 16 Maio 2022, 12h15 - Publicado em 15 Maio 2022 22h17
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(Arte/Redação)

egundo um estudo organizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais de 116,8 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar. Desses, 20,5% não contam com alimentos em quantidade suficiente e 9% estão passando fome. Além disso, a comida existente no país está carregada de agrotóxicos. Somente em 2020, o Brasil aprovou o registro de 493 deles, maior número já documentado pelo Ministério da Agricultura. 

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É esse cenário que Bela Gil quer transformar. Neste ano, a ativista e nutricionista até pensou em entrar para a política e se candidatar a deputada pelo PSOL, mas desistiu – por enquanto. “Sinto que já faço política há bastante tempo com a minha profissão e o meu ativismo. Só não é de uma forma parlamentar ou executiva”, afirma à Elástica. “A gente precisa de uma voz representante da soberania e segurança alimentar no sentido transformador do nosso sistema de produção, distribuição e consumo de alimentos.”

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Bela conta que passou a se aproximar dessa questão aos 14 anos, quando começou a praticar ioga. Quando adolescente, diminuiu o consumo de açúcar e cortou a carne e os ultraprocessados. Estes últimos são considerados uma espécie de inimigo, já que são conhecidos por agravar diabetes tipo 2, doenças cardíacas, câncer e até depressão. “As políticas públicas são essenciais para que a população tenha uma alimentação mais saudável. Precisamos do apoio do Estado para limitar o acesso aos ultraprocessados”, pontua. “E isso pode ser feito de diversas formas, como a taxação e a regulamentação dos produtos. Não faz sentido que refrigerantes sejam vendidos em escolas e hospitais, por exemplo.”

“Sinto que já faço política há bastante tempo com a minha profissão e o meu ativismo. Só não é de uma forma parlamentar ou executiva”

A chef, que ficou conhecida pelo programa Bela Cozinha, no canal GNT, é mestre em Ciências Gastronômicas pela Universidade de Ciências Gastronômicas da Itália e bacharel em nutrição pela Hunter College em Nova York. Em 2021, abriu seu primeiro restaurante de culinária orgânica em São Paulo, o Camélia òdòdó. “A surpresa das pessoas que vêm comer e gostam desses novos sabores é muito legal. Eu amo gravar, mas esse carinho, receptividade e o olho no olho que só o restaurante proporciona é uma experiência maravilhosa”, diz.

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(Bela Gil/Divulgação)

Todo seu conhecimento e experiência agora está indo para a orientação do programa Cozinhas & Infâncias, criado pelo Instituto Comida e Cultura. Seu objetivo é levar educação alimentar e conscientizar as novas gerações a partir da capacitação de professores da educação básica sobre práticas culinárias, história, cultura e biodiversidade do país. “A criança que aprende a reconhecer os alimentos e a ter uma dieta mais diversa e composta por vegetais e produtos frescos propõe impactos muito positivos não só no meio ambiente, mas também à própria saúde”, reflete. Abaixo, você confere nosso papo completo com Bela Gil.

Como começou a sua ligação com a alimentação saudável? Teve algo que fez você se preocupar mais com essa questão?
Passei a prestar mais atenção na minha alimentação quando comecei a praticar ioga na adolescência, com 14 anos. Ao longo dos anos, fui modificando a forma como comia e retirando da dieta produtos ultraprocessados, açúcar e carne – eu já não consumia muito, porque meu corpo negava. Não cabia mais na minha rotina. Essa mudança foi muito profunda porque acabei sentindo muita melhora no meu corpo físico e na mente. A partir de então, me interessei pela nutrição e por entender a funcionalidade dos alimentos na nossa vida. Aí fiz faculdade e, claro, não poderia faltar a culinária para compor esse conhecimento. Quis muito compartilhar essa revolução com as pessoas, comecei dando aula em casa, cozinhava para os outros, até que fui chamada para apresentar o Bela Cozinha, no canal GNT

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Atualmente, falar sobre alimentação é muito delicado. Está tudo muito caro e, quando pensamos em orgânicos, a maioria da população não tem acesso. Qual é a saída para melhorar a qualidade alimentar do brasileiro?
A saída são as políticas públicas. A gente tem que mudar a forma como produzimos os alimentos e precisamos do apoio do poder público para limitar o acesso dos ultraprocessados. Isso pode ser feito de diversas formas, como a taxação e a regulamentação dos produtos. Não faz sentido ter refrigerantes sendo vendidos em escolas, hospitais, por exemplo. É claro que precisamos de educação alimentar, mas o conhecimento não é o suficiente, o acesso também é urgente. Uma saída clara seriam os incentivos fiscais para fomentar a agroecologia e a agricultura familiar.

“Temos que mudar a forma como produzimos os alimentos e precisamos do apoio do poder público. Precisamos de educação alimentar, mas conhecimento não é o suficiente, o acesso também é urgente”

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(Daniel Aratangy/Divulgação)

Rolou um burburinho sobre uma possível candidatura a deputada pelo PSOL. De que forma você contribuiria para a política brasileira? A alimentação é um ato político?
É sim. Não vou me candidatar nessas eleições, mas é algo que gosto muito. Sinto que já faço política há bastante tempo com a minha profissão e o meu ativismo. Só não é de uma forma parlamentar ou executiva. A gente precisa de uma voz representante da soberania e segurança alimentar, no sentido transformador do nosso sistema de produção, distribuição e consumo de alimentos. 

Temos pessoas passando fome por conta do sistema existente e pela desigualdade social, então chega uma hora que não temos mais o que fazer. Achei que, se entrasse para a política, poderia ajudar a fazer uma mudança mais efetiva. Daqui de fora a gente pressiona, mas quem assina os papéis está lá dentro. 

Você já comentou que não dá para pensar em segurança alimentar sem lembrar do acesso à terra. Como a reforma agrária se conecta com essa questão?
Ela é central nessa questão. Quando pensamos na democratização da alimentação, precisamos entender a raiz do nosso problema. A comida vem da terra, então é necessário um acesso mais democrático a ela. O Brasil é um dos países com maior concentração de terras, onde 1% da população agrária detém quase metade do que existe. Ao mesmo tempo, sabemos que a agricultura familiar fornece 70% da comida que comemos no dia a dia, enquanto o agronegócio é mais voltado para a exportação. Quando pensamos nessa redistribuição e incentivamos a produção de pequena e média escala, conseguimos garantir a comida no prato de toda a população.

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O Pacote do Veneno tem sido muito discutido pelas entidades do governo. Se aprovado, ele aumentará ainda mais a quantidade de agrotóxicos no Brasil, permitindo a liberação de substâncias cancerígenas e proibidas em outros países. Quais as consequências disso para a população? Como a sociedade civil pode impedir que isso aconteça?
As consequências são muitas, mas a maior é o impacto na nossa saúde e na saúde do meio ambiente, da fauna, da flora e dos rios. Estamos vivendo um envenenamento em massa. O Brasil, nesses últimos anos de governo Bolsonaro, aprovou tantos agrotóxicos que hoje eles estão em todos os lugares, até na água. E isso acarreta o aparecimento de doenças degenerativas, câncer, má formação fetal e até problemas neurológicos. É um genocídio silencioso. Estão nos matando e a gente não tem ciência disso.

A sociedade civil, por sua vez, pode fazer pressão e mostrar que gostaria de viver o oposto. Existem alternativas de mudança porque é possível alimentar o mundo de maneira limpa. O Brasil pode sair desse lugar de querer ser o celeiro do mundo e, ao invés de se preocupar com a exportação, alimentar nossas 20 milhões de pessoas que passam fome. Com essas informações, podemos nos organizar e fazer com que os políticos nos ouçam. 

“O Brasil pode sair desse lugar de querer ser o celeiro do mundo e, ao invés de se preocupar com a exportação, alimentar nossas 20 milhões de pessoas que passam fome”

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(Bela Gil/Divulgação)

Seu novo projeto é o Cozinhas & Infâncias, que busca formar professores para que eles ajudem as crianças a se conectarem com o alimento. O que muda no indivíduo quando ele tem educação alimentar desde cedo?
É muito mais fácil a gente se educar quando criança do que se reeducar no futuro. A criança que aprende a reconhecer os alimentos e a ter uma dieta mais diversa e composta por vegetais e produtos frescos propõe impactos muito positivos não só no meio ambiente, mas também na própria saúde. Quando alguém tem educação alimentar, tem mais ferramentas para escolher melhor o que comer, não só para o bem de sua saúde mas pelo bem do meio ambiente. 

O problema do ultraprocessado é que ele é usado como estratégia da indústria alimentícia. São produtos altamente palatáveis, muito rápidos, práticos e que facilitam muito nosso dia a dia. Mas pagamos um preço muito alto por isso. Fazer com que as crianças entendam essas questões é muito importante para que elas façam melhores escolhas. 

Como pensar numa alimentação saudável para os pequenos num mundo rodeado de propagandas de junk food?
Esse é um desafio para os pais e para a criança. É aí que entra o papel do Estado de regular propagandas infantis, limitar o acesso de junk food e criar políticas públicas que incentivem a alimentação saudável dentro das escolas. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por exemplo, propõe a compra de 30% de alimentos da agricultura familiar. É uma ação que precisa ser fortalecida, já que foi praticamente esquecida durante esse governo. As duas pontas precisam fazer seu trabalho. Ainda assim, entendo que é difícil porque não vivemos numa sociedade que nos ajuda a navegar nessa questão. Quando a gente mudar nossa visão sobre o que é alimentação de criança, podemos lidar melhor com isso. 

Você fala abertamente sobre seu casamento aberto. Como essa decisão foi tomada? Quais são as dificuldades de ter uma relação não monogâmica sendo uma pessoa pública?
Na verdade, essa decisão nunca foi tomada, ela sempre existiu. Temos essa dinâmica desde muito cedo, acho que pelo fato de estarmos há muito tempo juntos e termos essa segurança e confiança muito grandes. Isso fez com que chegássemos nesse lugar de nem precisar rotular nada. Hoje em dia, se fala mais nesse assunto, mas foi algo que nós sempre escolhemos. 

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É muito bom que as pessoas falem disso porque sou alguém que se propõe estar nesses lugares de debate que acabam saindo um pouco do convencional. Essa conversa traz reflexões importantes. Quando me criticam, não lido mal com o ódio da internet, não é uma grande questão para mim. O mais importante dessa relação pública é a verdade – é tudo muito claro para a nossa família, não existem surpresas. Quando as coisas são faladas e feitas de maneira verdadeira, tudo flui bem. O grande problema da nossa sociedade é que muitos vivem relacionamentos abertos e nem sabem. 

“É bom que falem mais sobre relações não monogâmicas. Quando as coisas são conversadas e feitas de maneira verdadeira, tudo flui bem. O problema é que muitos vivem relacionamentos abertos e nem sabem”

Você tem dicas para quem quer abrir o relacionamento ou começar essa conversa com o parceiro?
Acho que vai muito de cada um. Não me atreveria a dar uma dica porque é algo muito natural meu. Tenho amigas que falam que jamais conseguiriam porque não é de sua natureza. Mas é aí que a gente tem que começar esse debate de ‘não é da natureza porque a gente foi criado nessa sociedade patriarcal, machista e monogâmica ou é porque eu sou assim mesmo?’. Vale dar uma pensada e mudar nossas perspectivas. Assim como a alimentação, precisamos ouvir outras histórias e refletir se só a monogamia nos traz felicidade. Talvez não. E aí, quais são os outros caminhos? 

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(Daniel Aratangy/Divulgação)

Em 2022, faz um ano que você abriu seu primeiro restaurante. Depois de passar tanto tempo cozinhando para as câmeras, como é cozinhar para pessoas reais?
É muito gratificante poder ouvir a opinião das pessoas sobre o meu trabalho e em relação à comida. A surpresa das pessoas que vêm comer e gostam desses novos sabores é muito legal. Eu amo gravar, mas esse carinho, receptividade e o olho no olho que só o restaurante proporciona é uma experiência maravilhosa.

A comida nos atinge muito em um lugar de afeto. Tem algum prato que você come e te leva para esse lugar?
Tem a macarronada da minha avó, mas tem que ser feita especificamente por ela. E tem o abará, uma comida baiana que sou muito apaixonada. É uma das comidas que mais amo na vida. Eu cresci no Rio de Janeiro, mas passei todas as minhas férias em Salvador de pequena. Quando como o abará, lembro de toda essa alegria de ser criança, a leveza e os momentos bons – me dá um quentinho no coração.

“A surpresa das pessoas que vêm comer e gostam desses novos sabores é muito legal. Eu amo gravar, mas esse carinho, receptividade e o olho no olho que só o restaurante proporciona é uma experiência maravilhosa”

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5 dicas para quem quer começar a se alimentar de forma saudável

1. Ler tudo o que você for comprar. Ver a lista de ingredientes é uma das coisas mais importantes quando estamos comprando algo embalado. A indústria é bem safada, é preciso saber que o primeiro ingrediente da lista é o que tem mais. Então se for açúcar, ali o que mais tem é isso.

2. Ir à feira. Os alimentos são mais frescos, acabamos consumindo mais vegetais e acabamos economizando nas compras.

3. Tentar cozinhar mais. Às vezes isso acaba virando uma sobrecarga no dia a dia, mas ter um ritual na cozinha é muito importante para nos conectarmos não só com o alimento, mas com as pessoas com quem moramos. Sentar lado a lado e comer junto é uma sensação única que só a comida proporciona.

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4. Comprar diretamente de produtores. Você pode apoiar a agricultura familiar além de pegar dicas de receitas com essas pessoas que estão há anos neste ofício.

5. Diminuir o consumo de ultraprocessados e de carne é fundamental para melhorar nossa saúde. 

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