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Trace, comunicação em primeira pessoa, singular e plural

Primeiro canal voltado à cultura afro-urbana em 70 anos de TV no Brasil, equipe é quase toda formada por negros, que ocupam os cargos de liderança

por Douglas Vieira 18 nov 2021 23h20
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(Clube Lambada/Ilustração)

 brasileiro foi historicamente (e criminosamente, já que o racismo estrutural reproduz de fato um crime) acostumado a ouvir as histórias do Brasil, tanto a dos livros como a registrada diariamente nos grandes meios de comunicação, contadas a partir do olhar de pessoas brancas, mesmo quando o assunto é negritude. Está acontecendo agora, enquanto eu, jornalista branco, escrevo uma reportagem sobre o canal de TV multiplataforma Trace Brazuca, braço da companhia global francesa de mídia e entretenimento Trace, que iniciou suas atividades no Brasil em 2019.

Já neste século, estamos nos acostumando um pouco (falta muito) a ver intelectuais, profissionais e influenciadores negros emergirem como vozes importantes na mídia, mas quase sempre os chamamos para falar exclusivamente de temas ligados à negritude ou ao racismo. Trabalhando nos meios de comunicação em si, no entanto, há ainda poucos profissionais de ascendência africana, principalmente se olharmos para a proporção da sociedade.

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“Na Trace, a gente fala sobre proporcionalidade, não sobre representatividade. Somos muitos, 54% da população, tinha que ter 54% de nós em cada comercial que a gente vê na TV”, defende a terapeuta, youtuber no canal Soul Vaidosa e apresentadora da Trace, Xan Ravelli. “A família brasileira tem de se sentir representada. E eu digo a família de 54% da população brasileira”, afirma a jornalista Kenya Sade, diretora de programação da emissora. “Eu tenho 34 anos hoje, já trabalho há 16, 17 anos, e é a primeira vez na minha vida, tirando a minha família, que estou em um lugar profissional em que somos maioria. Somos maioria não só trabalhando, mas comandando a empresa”, lembra o jornalista, roteirista e diretor de produção e conteúdo da Trace, Alberto Pereira Júnior.

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Minoria na mídia, maioria nas estatísticas

Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem atualmente 54% de seu povo negro, uma população de aproximadamente 120 milhões de pessoas. Esse número, se comparado com dados demográficos globais, formaria uma nação entre as 15 mais populosas do planeta. Ainda assim, temos a impressão de que vivemos em um país majoritariamente branco se olharmos para qualquer empresa brasileira, principalmente nos postos de liderança.

“Na Trace, a gente fala sobre proporcionalidade, não sobre representatividade. Somos muitos, 54% da população, tinha que ter 54% de nós em cada comercial que a gente vê na TV”

Xan Ravelli
Xan Ravelli
Xan Ravelli (Trace Brasil/Divulgação)

Com este cenário, há de se imaginar que não foi missão simples colocar o projeto de pé. O franco-martinicano Olivier Laouchez, fundador da plataforma Trace, tentava entrar no Brasil há mais de 15 anos, sempre sem sucesso. Até fevereiro de 2019, quando conheceu o empresário brasileiro José Papa Neto, o Zizo, durante o Singularity University’s Global Summit, em Palo Alto, na Califórnia.

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Zizo se recuperava de um grave problema de saúde decorrente de um burnout, que quase o levou à morte após a saída dele de Cannes Lions, onde era CEO. Foi no início de 2019 que me conectei ao projeto, ao conhecer Olivier Laouchez, empreendedor visionário. Fui atrás da ideia de trazer ao Brasil um ecossistema de mídia, entretenimento e educação de cultura afro-urbana, refletindo o meu desejo de encontrar em meu trabalho um caminho em que eu pudesse causar impacto real. Muita gente que não deu importância da primeira vez que mostrei o projeto está vindo atrás agora, após os movimentos de 2020, durante a pandemia, conta Zizo, CEO da Trace para a América Latina e CEO e sócio-fundador do braço brasileiro da companhia. “Eu me conectei realmente de coração com a missão da Trace e encontrei algumas das pessoas mais incríveis com quem já trabalhei, que me ajudariam a transformar esse sonho em realidade”, completa o CEO. 

A primeira chegada ao time foi AD Júnior, influenciador e especialista em marketing digital, que ganhou grande notoriedade em vídeos no YouTube e posts em diferentes redes sociais, sempre falando sobre a crueldade do racismo estrutural brasileiro. AD tornou-se o diretor de marketing da Trace Brasil. “Outros canais negros de televisão, para acontecerem no mundo, precisaram de uma parceria com pessoas brancas. Eu nunca olhei para isso como algo louco: ‘Ah, um homem branco me chama para participar de um ecossistema negro’. Eu sabia que ele tinha uma conexão com o Olivier Louchez, que é o fundador da Trace, e que tinha um mandato para implementar o projeto aqui, com o programa Trace Trends”, lembra, sobre o primeiro passo para a chegada da Trace ao Brasil. 

Com o sucesso do programa, veio o segundo passo: a companhia, com sede em Paris e conteúdo distribuído para mais de 100 países, completou em julho de 2021 um ano no ar com canal proprietário na TV por assinatura. 

Elástica convidou para um bate-papo os profissionais que lideram o primeiro ecossistema de mídia negro do Brasil, e incluímos na conversa a psicóloga Maria Célia Malaquias, que se dedica a estudar a saúde mental da população negra e as relações etnico-raciais. “Minha abordagem é psicodrama e, dentro dessa abordagem, tenho tentado dar a minha contribuição trabalhando e também buscando produzir conhecimento nesse segmento étnico-racial.”

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Abaixo, a história da Trace é contada a partir da emoção de quem faz parte dela, em primeira pessoa, no singular e no plural.

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Xan Ravelli, terapeuta, youtuber e apresentadora da Trace: Na hora que chegou o convite da Trace, a minha reação foi cair no chão da minha sala. Eu só chorava, chorava, foi um momento bem catártico. Era um sonho ali se realizando, um sonho que não estava nem colocado ainda como meta, nem colocado como plano. Quando chegou, foi bem, bem importante. [Xan chora ao lembrar da cena.]

Alberto Pereira Júnior, jornalista, roteirista e diretor de produção e conteúdo da Trace: São duas pessoas brancas na equipe, O Zizo, fundador, e temos um diretor de arte que é branco também e trabalha diretamente comigo desde que começou o projeto.

Kenya Sade, jornalista e diretora de programação da Trace: Há uma satisfação em trabalhar em um ambiente diverso, me faz acreditar em um amanhã melhor, mais plural, no qual haja equidade racial e representatividade de fato. A maioria das pessoas envolvidas na produção do canal são negras e não poderia ser diferente. Tem sido uma experiência de pertencimento, de olhar-se no espelho e orgulhar-se da imagem refletida. 

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AD Júnior, influenciador, especialista em marketing digital e diretor de marketing da Trace: Para muitas pessoas, isso é loucura total, mas isso é a realidade das pessoas brancas o tempo todo, estão sempre entre iguais. Na Trace, a gente está entre iguais o tempo todo também. E todo mundo está ali por conta de suas competências, são pessoas extremamente experientes, que já foram para fora e já trabalharam em cargos de gestão em outras empresas, e todas as pessoas que estão lá têm um objetivo também.

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“Para muitas pessoas, isso é loucura total, mas isso é a realidade das pessoas brancas o tempo todo, estão sempre entre iguais. Na Trace, a gente está entre iguais o tempo todo também. E todo mundo está ali por conta de suas competências”

AD Júnior
AD Júnior
AD Júnior (Vitor Vieira/Divulgação)

Maria Célia Malaquias, psicóloga:  A gente precisa estar sempre atento para que esse espaço se mantenha e que outros se abram. É pouco ainda, mas precisamos considerar que já é um espaço conquistado e estarmos vigilantes para fortalecer aqueles que estão lá.

Alberto Pereira Júnior: A gente está trabalhando à distância e fico muito feliz toda vez que a gente faz reuniões – e são várias reuniões semanais – porque vejo pessoas que são parecidas comigo na tela. Penso: “Que legal, que importante o que a gente está vivendo”.

Xan Ravelli: Sabe qual é a parte mais legal?  A gente não fala sobre racismo, porque não precisa, todo mundo que está ali sabe como funciona, como ele se articula. Estamos entre os nossos, não tem a necessidade de pontuar o racismo. É uma comunicação muito nossa.

AD Júnior: Todos nós vivemos experiências racializadas num país que nos detesta, então, a gente não precisa falar o óbvio. É sentar numa reunião e falar com os nossos iguais. É a mesma experiência de uma pessoa descendente de italiano que senta numa empresa e se vê como igual aos outros, ou um descendente de alemão… 

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Xan Ravelli: Eu sou natural da internet, do YouTube. Estou nas redes sociais faz bastante tempo e comecei justamente por conta da falta de representatividade. Sou mãe de uma menina preta que tem 9 aninhos hoje, mas, quando ela tinha um e meio, o pai dela e eu conversávamos bastante sobre representatividade e eu contava para ele como a gente não se vê enquanto mulher preta retinta, crespa. E lembrava de como foi complicado isso na adolescência e em toda a fase de amadurecimento. Aí veio a ideia: mesmo que a minha cara preta fosse a única ali, iria ter isso como representatividade para minha filha.

AD Júnior: Estar no YouTube, onde estou, era uma necessidade. Eu queria falar, mas como é que eu ia fazer isso? Se eu não precisasse estar na frente, acho que também seria ok, se eu pudesse só estar atrás fazendo acontecer. Se eu pudesse realizar o sonho antigo que eu tinha de uma emissora de TV preta. Eu só comecei a ser um dos apresentadores do Trace Trends na pandemia.

Kenya Sade: O que eu posso dizer é que talvez a gente tenha um talk show do AD Júnior, então, aguardem. Mas, se perguntarem, não fui eu que falei [risos].

“O audiovisual é muito importante porque cria imagens de representatividade e faz sonhar. Mas, em todas as telas, pode reforça estereótipos, mas pode também quebrar. Até quando a gente vai ter só preto com a arma na mão o tempo inteiro?”

Alberto Pereira Júnior
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Alberto Pereira Jr.
Alberto Pereira Jr. (Trace Brasil/Divulgação)

Xan Ravelli: As primeiras pessoas que olhei na TV e falei “nossa, quero ser ela” foram a Isabel Fillardis, na novela O rei do gado (1996), e a Valéria Valenssa. Eu olhava para as duas e pensava isso. Hoje em dia, a gente vê toda a questão da objetificação, a hiperssexualização do corpo da mulher preta, mas eu não consigo ter esse olhar até hoje para figura da Globeleza. Eu entendo toda a importância dela estar vestida agora, de terem acabado com isso. É fruto da ausência. Era o que tinha e, para a gente, era o máximo. Isso não é legal, precisava ter um monte de coisas, desenhos, apresentadoras, seria muito melhor, mas não tinha. Valéria era a única. Olho até hoje com muito amor para ela. 

Alberto Pereira Júnior: O audiovisual é muito importante porque cria imagens de representatividade e faz sonhar. A gente, que cresceu assistindo Disney, cresceu com um viés sobre o que é uma família, o amor romântico. Mas o audiovisual, em todas as telas, de fato cria imagens e reforça estereótipos, mas pode também quebrar. Até quando a gente vai ter só preto com a arma na mão o tempo inteiro? 

Kenya Sade: Se ontem a discussão era sobre ter visibilidade diante das câmeras, hoje o tópico é sobre quem conta a história, qual olhar está por detrás da narrativa. Trabalho ao lado de mentes brilhantes, como o AD e o Alberto. 

Maria Célia Malaquias: Quanto mais a população negra avança, começa a ocupar espaços, que até então eram segregados, só de pertencimento ao branco, há mais inquietações e incômodos, conflitos. Aquilo que era de certa forma meio velado, ou tentava se manter velado, começa a ser explicitado. É o que acontece no âmbito das universidades, por exemplo, no ambiente corporativo, quando a empresa começa a ter política de inserção de mais pessoas negras nos seus quadros. E todos ganham com essa abertura: a universidade fica mais real, mais Brasil, as empresas e os canais de TV também, mas são espaços que o negro lutou para estar ali e ainda se vê pouco. Então, na subjetividade do negro, tem um impacto importante também. 

“Ter uma mulher preta retinta ao lado de dois homens gays negros apresentando um programa exibido na maior rede de comunicação que a gente tem, que é a Globo, já é um ato político”

Xan Ravelli
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(Trace Brasil/Divulgação)

AD Júnior: Eu tinha 10 anos quando vi a revista Raça pela primeira vez e, dos 10 aos 12 anos, tive muitas revistas Raça. Eu me via ali e isso é muito importante. Abria a revista e estava escrito nas fotos: fulano de tal empresário, fulano de tal modelo, conheça a cantora lírica… Isso faz uma diferença enorme para uma criança, que pode se ver e pode pensar: “Essa pessoa eu gosto, essa pessoa eu acho bonita, essa roupa eu já não acho tão bonita, essa pessoa talvez eu não goste tanto”. Aí você pode ter a pluralidade, diversidade de você mesmo, porque, na maioria das vezes, as pessoas pretas se veem na televisão só como bandido, empregada… E aí pensa você abrindo uma revista e se vendo em todos os lugares. É muito importante e é esse lugar que eu quero ocupar.

Kenya Sade: A família brasileira tem de se sentir representada. E eu digo a família brasileira dos 54% da população brasileira. Essas pessoas precisam se sentir representadas. Nós temos trabalhado incessantemente para trazer essa representatividade. 

Xan Ravelli: A minha pegada de conteúdo é trazer a nossa figura para esse lugar de normalidade, de naturalização. Quando você normaliza a figura das pessoas, você humaniza. O meu grande tesão é trazer tudo para esse lugar, e é essa mais ou menos a pegada do quadro “Make com a Xan”: conversar com várias pessoas incríveis sobre estética – um tema muito caro para mim e muito sensível para toda a população preta. E a estética vai permear um monte de outros assuntos bacanas. 

Alberto Pereira Júnior: A gente parte na sociedade desse sentido de que a branquitude, nesse recorte homem heterossexual, traz características universais. Mas não são. São elementos hegemônicos, mas que são características. E aí a gente tem que pensar: por que essas características fazem deste um ser humano para ser ouvido, e essas outras, que são diferentes, fazem estas outras pessoas não humanas, não serem ouvidas? O que a gente vive hoje é o resultado de 400 anos de um sistema de apagamento, de eugenia, de racismo estrutural, que faz com que pessoas pretas, ou pessoas não brancas, não se reconheçam.

Xan Ravelli: O nosso corpo já é político. Ter uma mulher preta retinta ao lado de dois homens gays negros apresentando um programa exibido na maior rede de comunicação que a gente tem, que é a Globo, já é um ato político. Trazer essas figuras negras para esse lugar de naturalidade, mostrando histórias de criatividade, de empreendedorismo, de criação, de música, de dança, de beleza, trazendo a gente para esse lugar que sempre foi nosso, mas que muitas vezes é invisibilizado. Isso é muito importante.

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Maria Célia Malaquias: Quando você aponta o que aconteceu em maio de 2020, cinco assassinatos terríveis diante das câmeras lá nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, foram quantos, né, naquele mesmo mês de maio terrível? A imprensa mostrou o menino João Pedro, assassinado dentro da casa dele, e a comoção foi diferente, porque a maneira com que lidamos com o racismo aqui é diferente. A coisificação da pessoa negra faz com que não se considere o negro como pessoa. A dor do negro é uma dor menor.

Kenya Sade: Durante muitos anos, a invisibilidade negra nos meios de comunicação e mídia, causada pelo apagamento histórico, não permitiu que nós, pessoas negras, pudéssemos nos ver representadas de forma positiva. Quantas vezes pensei o quão significativo seria se filmes, documentários, novelas e programas na televisão representassem de forma verossímil a nossa realidade.

“A coisificação da pessoa negra faz com que não se considere o negro como pessoa. A dor do negro é uma dor menor”

Maria Célia Malaquias

AD Júnior: Eu estava lembrando esses dias, e é engraçado, que eu vivia sempre falando sobre criar um canal de TV preto. Em 2017, cheguei em casa e criei duas horas de programação em um programa de edição, fiz a minha família assistir e falei: “Um dia a gente vai ter isso”. Ficamos duas horas assistindo. 

Xan Ravelli: Em Trace, a gente fala sobre proporcionalidade, não sobre representatividade.  A gente quer ter muita gente mesmo, somos muitos, 54% da população, tinha que ter 54% de nós em cada comercial de TV. 

AD Júnior: Estamos espalhando a semente da normalização de pessoas pretas falando sobre diferentes assuntos. Então pode ter um programa na Trace falando só de moda, a apresentadora pode ser uma mulher negra, mas ela pode não falar de moda africana ou moda afro urbana, e pode falar de Gucci e Chanel também, por que não? Pode ter um que fala de carro, um que fala de comida, as pessoas nos colocam muito nesse lugar de que é um grupo étnico com uma bola de cristal que fica falando “nós somos diversos”. Somos 120 milhões de pessoas descendentes da maior tragédia do mundo, que nos afetou em todos os momentos e que a gente, hoje, está tentando juntar pedaços disso para poder fazer a leitura de um painel. A gente pode fazer com que jovens negros periféricos, pobres, e até jovens brancos comecem a normalizar a presença negra dentro da TV no dia a dia.

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Kenya Sade: A subjetividade negra foi construída socialmente por imagens que nos colocavam em situação de subalternidade e subserviência. Construções de narrativas positivas, como forma de contrapor essa visão estereotipada, são cruciais, sobretudo para mudar a mentalidade da sociedade.

Xan Ravelli: Antes da Trace, eu me permitia sonhar muito pouco com a TV. Ela já era um desejo muito íntimo, mas eu me permitia sonhar muito pouco com isso, a ponto de nem contar pra ninguém, porque não, né, imagina, é muito meu, não vai dar nada. Eu aqui, mais de 40 anos, botar minha cara na televisão, com um monte de menina nova aí. E a Trace veio com isso, com possibilidades infinitas de sonhar. Se isso, que era algo tão distante, é possível, o que não vai ser?

Maria Célia Malaquias: No meu consultório, vejo pessoas em que você vê todo o potencial, que até já conseguiram galgar alguns postos, poderiam muito mais, mas têm uma insegurança de ir para um cargo de diretoria, por exemplo, de ser um gestor de um grupo. É uma sensação muito complexa, difícil inclusive de verbalizar, fica mais na sensação, é como se até o próprio corpo fizesse um movimento de vai, mas puxa. Porque já é esperado que vai adentrar em um lugar que vai ser hostil. 

“A subjetividade negra foi construída socialmente por imagens que nos colocavam em situação de subalternidade e subserviência. Construções de narrativas positivas, como forma de contrapor essa visão estereotipada, são cruciais, sobretudo para mudar a mentalidade da sociedade”

Kenya Sade
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Kenya Sade
Kenya Sade (Trace Brasil/Divulgação)

Alberto Pereira Júnior: Por isso que a gente não parte das exclusões, da vulnerabilidade, no nosso conteúdo. Partimos da potência e posicionamos que somos pessoas, somos todos humanos, pessoas pretas são humanas também. É preciso resgatar essa humanidade que nos foi tirada. Quatro séculos de escravização fizeram da gente máquina para trabalhar ou fetiche sexual e não uma pessoa. 

Xan Ravelli: Nós somos muito mais do que isso, e é muito bom poder trabalhar em uma equipe onde existe a liberdade de conversar outras coisas. E eu chego no trabalho e não tenho receio nenhum da maquiadora, não preciso carregar a minha base na bolsa, porque sei que quem vai estar lá para me atender vai saber trabalhar com a minha pele. A gente não precisa conversar com o câmera sobre o que ele precisa fazer para valorizar a nossa cor, porque ele já vai saber. A gente sente o que as pessoas brancas sentem o tempo todo, esse conforto de você não precisar falar, justificar, carregar base na bolsa, explicar coisas. 

AD Júnior: A gente quer criar um lugar onde os pretinhos e pretinhas vão poder sonhar e contar as suas histórias. Se quiser cantar, canta se quiser dançar, dança; se quiser contar uma história de viagem, vive; ver outras coisas, conhecer outros lugares, outras línguas, que a Trace seja esse lugar onde pessoas pretas possam sonhar. 

Xan Ravelli: Mesmo hoje eu ainda me vejo escondendo algum sonho, por mais que a gente saiba o quanto é possível agora, o quanto essas barreiras vão se expandindo, não é sempre que a gente se sente confortável e há muitas feridas aqui. Por mais que a gente trabalhe em terapia, elas estão gritando dentro da gente. Hoje, bem menos, com certeza, mas eu não vejo como impossível ainda ter alguns sonhos assim, que eu fale: “Não, deixe esse aqui guardado, que pode ser que não aconteça, pode ser que não seja possível, que eu não me enxergue naquele lugar”. 

“Partimos da potência e posicionamos que somos pessoas, somos todos humanos, pessoas pretas são humanas também. É preciso resgatar essa humanidade que nos foi tirada. Quatro séculos de escravização fizeram da gente máquina para trabalhar ou fetiche sexual e não uma pessoa”

Alberto Pereira Júnior
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Maria Célia Malaquias: Alguns se armam – é como se fosse mesmo uma armadura interna – e vão. Mas também tem muito sofrimento e muitos desistem. Outros carregam a dor de ver que teriam tudo para ocupar aquela vaga, mas não foram escolhidos. Não foi dito que não foi escolhido porque é negro ou porque é negra, mas eles sabem. E tem ainda pessoas que, por exemplo, querem ir numa loja de grife quando conquistam um certo poder econômico, se preparam para isso e, de repente, essa pessoa se sente travada. O sofrimento psíquico acomete muito as pessoas negras por situações de vivência racista, que é uma dor enorme, de se achar profundamente inferior, que não vai conseguir.

Alberto Pereira Júnior: É por isso que eu digo que estou vivendo o momento mais importante da minha vida. É o momento de colocar tudo que aprendi e estudei nessa profissão. Eu trago todo o meu conhecimento e o meu olhar crítico, somado a tentativa de olhar plural do jornalismo – porque o jornalista tenta ser plural, a gente sabe que não consegue, mas a gente tem que tentar olhar e trazer essas novidades. Eu parto disso para criar e, junto com a minha equipe, pinçar os assuntos de que vamos falar. 

Kenya Sade: Este sonho de um canal de TV a cabo segmentado para pessoas afro-brasileiras não é novidade. Foram anos de tentativas e muitas conversas para que esse objetivo fosse alcançado. Há décadas, vozes negras no Brasil trazem a retórica da importância de contarmos nossas trajetórias em primeira pessoa.

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Alberto Pereira Júnior: A gente fala de vida e, quando a gente fala disso, a vida inclui tudo. Tem a trajetória, que às vezes é mais difícil, mas inclui na conversa o sonho. O que de fato essa pessoa quer realizar e vem realizando e como ela está se moldando para realizar tudo isso. A gente se propõe a apresentar, ou reapresentar, essas vozes. Não é dar a voz para essas pessoas, porque a gente tem voz, mas é de fato apresentar para outras audiências – pretas ou não, porque a Trace é feita majoritariamente por pessoas pretas, mas não é apenas para pessoas pretas. É para todo mundo e todo mundo precisa conhecer, porque, só para nós mesmos, da gente para a gente, é muito importante, e existem iniciativas que são focadas nisso. Mas a gente entende que o Brasil é muito preto, mas não é só preto.

AD Júnior: O lugar da vanguarda é de muito sacrifício, de muito foco e, principalmente, toda narrativa tem que ser muito bem construída para não haver pessoas que nos interpretem de forma ruim, porque ainda quem vai mandar no que é bom ou ruim é a branquitude. Então precisamos construir mais lugares em que as pessoas pretas sejam as pessoas que digam o que é legal ou não na TV, jornalistas, pessoas que vão apontar tendências que são negras também, para que elas tenham um olhar diverso sobre produção de conteúdo na nossa televisão.

Alberto Pereira Júnior: A gente teve um presidente preto, o Nilo Peçanha, mas ele foi embranquecido pela história. Ele foi um dos primeiros presidentes do Brasil e era preto, mas foi na República Velha e não se falava sobre isso, mesmo sendo um presidente. É preciso falar desse apagamento, de como, no Brasil, a gente foi ensinado que não se pode discutir algumas coisas, aquela história de que não se discute futebol, religião… Vamos edulcorar a colonização, a criação do que é o Brasil, esse descobrimento com todas as aspas, porque não foi descobrimento, foi uma invasão e o assassinato da população nativa indígena e o sequestro da população preta para trabalhar aqui.

“O lugar da vanguarda é de muito sacrifício, de muito foco e, principalmente, toda narrativa tem que ser muito bem construída para não haver pessoas que nos interpretem de forma ruim, porque ainda quem vai mandar no que é bom ou ruim é a branquitude”

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Xan Ravelli: ‘A resistência é a arte mais antiga do meu povo’, como diria a Tia Má [jornalista, apresentadora, humorista e influenciadora digital Maíra Azevedo]. Eu adoro essa frase. 

Alberto Pereira Júnior:  Precisamos lembrar que Ruy Barbosa mandou queimar todos os arquivos referentes ao período do tráfico negreiro, porque a gente tinha tudo documentado, de onde tinham vindo essas pessoas. Depois da Independência, no início da República, queimaram tudo, para a gente não ter história. O medo estava aí, porque, se somos maioria, se a gente se levantasse, seria mais forte.

Kenya Sade: Não é só um sonho individual, mas uma conquista de todas as pessoas que vieram antes de mim e abriram os caminhos para que esse sonho pudesse se tornar realidade. O canal é a realização de um projeto coletivo! 

Ad Júnior: Nunca teve isso no Brasil antes e não tem outro. A gente tem vários sites, plataformas de streaming, mas TV, programa na TV aberta e fechada, experiência de branded content com grandes companhias, com produção de audiovisual nesse tamanho, não existe. Apesar de eu achar que possa existir no futuro e tudo bem.

Xan Ravelli: A gente vai ter mais canais produzidos e pensados por pretos na grade da televisão brasileira, eu não tenho dúvida. Eu só não queria ter que esperar mais 70 anos para isso. É algo que a gente precisa se perguntar mesmo: por que levamos 70 anos de TV no Brasil para ter o primeiro canal de TV? E precisamos levar essa reflexão para todos os âmbitos. 

Maria Célia Malaquias: A gente precisa passar por esse processo de questionar tudo aquilo que a gente vê, que a gente escuta. Lembrar, em qualquer assunto que estiver se falando,  que se está falando para toda a população brasileira e, nessa população, tem 54% que é negra. Na minha área, de saúde mental, por exemplo, quando a gente vai falar sobre o tema suicídio, o pesquisador, expert naquele assunto, comenta falando de dados, mas não leva em conta o alto índice que existe entre a população negra, sobretudo nos jovens. Em economia, também: como alguém está falando de economia sem levar em conta a enorme desigualdade de salários entre negros e não negros?

Alberto Pereira Júnior: A gente só vai mudar a lógica do racismo no Brasil quando a gente conseguir colocar dinheiro e de fato fazer o dinheiro circular entre outras pessoas pretas, expandir isso. E é isso que a gente está fazendo aqui também. Estamos contratando pessoas pretas que são potentes, que são profissionais incríveis. A gente não está fazendo favor para ninguém, estamos olhando para as pessoas de um jeito humano de verdade: “Olha, o seu talento faz sentido para trabalhar com a gente, vem somar e vem aprender com a gente também”.

AD Júnior: A gente pode criar conteúdos para outros canais ao mesmo tempo que criamos conteúdo para o nosso. Hoje, por exemplo, a gente tem um acordo com a TV Bahia. Na Bahia, o Trace Trends passa todo dia para quem quiser assistir na TV aberta.

Kenya Sade: No começo, a Trace era majoritariamente musical, mas sabemos que cultura afro urbana comunica para além e a gente quer trazer cada vez mais conteúdos em parcerias, programas de empreendedorismo, de turismo, de gastronomia, de lifestyle, comportamento, viagem, maternidade, sexo, política, humor…

Alberto Pereira Júnior: A gente começou com um programa exibido em parceria com a Rede TV, um canal aberto, que é o Trace Trends, uma revista eletrônica que a gente chama de empoderamento social. É um show de variedades com informação sobre tudo, música, esporte, tecnologia, comportamento, beleza, enfim, qualquer assunto cabe. É quase um menu do que a gente pode e vai ver nos ecossistemas da Trace, no canal Trace Brazuca e em nossos outros projetos. 

Xan Ravelli: A minha mãe sempre foi muito fã de programas femininos, sempre consumiu muito, com Claudete, Ana Maria Braga, todas essas mulheres. E eu ia ficar muito feliz de apresentar um programa feminino, acho que ia ser muito legal ter um programa apresentado por uma mulher preta, bissexual, para trazer assuntos de feminismo negro, para mulheres mais nesse outro viés, para poder falar sobre abuso, sexo, filhos, mas tudo sobre uma ótica bem diferente do que eu costumava ouvir nos programas quando eu era criança e a minha mãe assistia. 

Alberto Pereira Júnior: A ideia é construir um canal para todo mundo e essa é uma ambição muito grande: falar com todo mundo mesmo e de todas as idades. Já que é o único canal majoritariamente preto, precisamos fazer isso.

“Eu ia ficar muito feliz de apresentar um programa feminino, acho que ia ser muito legal ter um programa apresentado por uma mulher preta, bissexual. Falar sobre abuso, sexo, filhos, tudo sobre uma ótica bem diferente do que eu costumava ouvir nos programas quando eu era criança e a minha mãe assistia”

Xan Ravelli

Kenya Sade: A gente está trabalhando para produzir cada vez mais conteúdo editorial que seja relevante, para além também de shows e programas musicais. Muita coisa vindo, nossa programação está incrível, o nosso horário nobre, que tem programas como Listas extraordinárias, a parceria com a Lab Fantasma, o Newcomers, o Trace Trends. Seguimos a parceria com a Sabrina Fidalgo, uma das maiores cineastas desse país, também temos a parceria com a angolana Mwana Afrika, uma revista eletrônica em que ela traz todas as novidades do continente africano. Tem muita coisa legal.

Alberto Pereira Júnior: Eu quero melhorar o mundo em que eu vivo, é uma missão particular minha e acho que todo mundo da equipe da Trace tem isso também, embora a gente também esteja trabalhando, não é uma ONG. A gente quer um mundo melhor para nossa existência. E, se é melhor para a nossa existência enquanto grupo diverso, vai ser melhor para todo mundo. Mas a Trace é uma empresa com objetivos comerciais. Temos sonhos e ideais muito ousados, mas também é para dar lucro.

Kenya Sade: Sempre fui sonhadora e sabia que este momento iria chegar. A Trace antecedeu todos os acontecimentos globais de 2020 e sabia da urgência de ressignificar as narrativas negras e não-brancas. Não há como falar de futuro sem falar em diversidade, seja voltada à pauta racial, de gênero, seja voltada às pessoas LGBTQIA+.

Maria Célia Malaquias: Essa é uma das questões que me move, a questão do acreditar, do esperançar. Paulofreireando,  é aquela esperança que você busca fazer acontecer. É nesse lugar que eu acredito. Temos que continuar vigilantes, continuar trabalhando, lutando, porque é uma conquista, sim, importante. E manter esse espaço também continua sendo uma batalha.

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